Para encerrar a 5ª temporada com chave de ouro, atendemos aos pedidos dos sócios do Clube e trouxemos a história de “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, um clássico do maior nome da música popular brasileira… Belchior.
Formato: MP3/ZIP
Tamanho: 54,6 MB
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Roteiro e locução: Gilson de Lazari
Revisão: Camilla Spinola e Gus Ferroni
Transcrição: Camilla Spinola
Arte da vitrine: Patrick Lima
Edição de áudio: Rogério Silva
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“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
Eu tenho profunda conexão com essa metáfora, que ouvi em uma canção chamada “Sujeito de Sorte”. Bel me disse isso um ano depois de eu ter sido diagnosticado com câncer. Era o otimismo em contraste com a morbidez. Cada um pega pra si o que quer, mas eu entendi assim: “Ei, levanta essa cabeça! Ninguém pode sofrer no ano passado. Quem traz o sofrimento para o presente somos nós, com nossas rusgas mal resolvidas.”
Outro exemplo de como Bel impactou é a frase: “Você não sente nem vê, mas uma nova mudança em breve vai acontecer. E o que era jovem e novo, hoje é antigo. Precisamos todos rejuvenescer.”
Conforme sua arte foi sendo valorizada e passou a influenciar multidões, essa frase ganhou interpretações diversas, transformando-se em um mantra que embalou mudanças políticas. Mas, a intenção do autor era apenas protestar contra as gravadoras, que continuavam investindo nos velhos medalhões dos anos 60, nos chatos do tropicalismo, como Bel os considerou em sua juventude, ao lado do pessoal do Ceará, recém-chegados ao eixo Rio-São Paulo, e sem espaço na mídia, que apenas investia nas velhas roupas coloridas.
A partir do momento em que você publica uma obra, ela deixa de ser sua e passa a ser de quem se encaixar nela. Palavras, amigos, são como navalhas, e eu tenho uma conexão profunda com Bel. Principalmente por causa das minhas decisões, que confundem o meu retrato 3 por 4. Se olho muito tempo pro meu RG, na minha foto começa a nascer um bigode preto e, logo, me vejo em Bel, chegando jovem na cidade grande, com os pés cansados e feridos…
São tantas músicas e conexões, que comecei a sofrer de indecisão ao saber que precisaria escolher uma para falar nesse episódio. Mas, logo percebi que essa escolha já estava feita… Clareando meu caminho, como tudo que é maravilhoso… Jamais negarei minhas origens… Eu também sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, e trago comigo a história de um antigo poeta e compositor cearense chamado: Antônio Carlos Belchior.
O episódio mal começou e eu já estou com as palavras embargadas. Hoje faremos jus ao pedido de muitos sócios… que clamaram por Belchior. Se você também vê valor no que fazemos aqui nesse podcast, apoie essa missão. O Clube é um oferecimento dos sócios e, sem eles, não teríamos chegado até aqui. Belchior encerra a nossa quinta temporada. Somos gratos a todos vocês, principalmente aos sócios diretores: Matheus Godoy, Henrique Vieira Lima, Caio Camasso, Marcelo Leonardo, Luis Machado, Lucas Valente, Antonio Valmir Salgado Jr., Emerson Silva Castro, João Junior Vasconcelos Santos, Diego Vinicius, Jaques Liston, Liston Jr. e André Fonseca.
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Sendo esse o último episódio, como é de praxe, logo teremos também o episódio extra sobre a quinta temporada, onde Cocão e eu iremos falar sobre as nossas escolhas, curiosidades, bastidores e também ler e-mails e mensagens dos ouvintes. Participe! Estamos nas redes sociais Facebook, Instagram, Twitter, Telegram, WhatsApp, YouTube… É só procurar por Clube da Música Autoral que você já começa a fazer parte desse Clube.
Bora lá, então, Cocão. Sem muitas “tiorias”, mas com respeito e sem ser vago, vamos contar a história do rapaz latino-americano, sem parentes importantes, que começa no interior do país, em Sobral, no longínquo ano de 1946.
No dia 26 de outubro de 1946 nasceu Antônio Carlos Belchior. Esse é o nome legítimo do rapaz latino-americano. Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes era um personagem, criado por Belchior para se apresentar como “o maior nome da MPB”.
Não era piada, não. Bel é o décimo Terceiro Filho do segundo casamento de seu pai, Otávio Belchior Fernandes, com Dolores Gomes Fontenelle Fernandes. Ao total, Belchior tinha 23 irmãos, sendo 10 do primeiro casamento e 13 do segundo. Haja disposição e colhões para criar tantos filhos assim.
Apesar de ser uma família humilde, o pai era um homem respeitado. Havia sido delegado e, depois, foi dono de uma mercearia, então, comida nunca faltou para a família Belchior, que era como eles se referiam. A música entrou na vida de Bel através dos sistemas de alto falantes instalados nas ruas, usados para transmissão de notícias da igreja, da quermesse, aniversários, casamentos, falecimento, divulgação do comércio e, claro, onde tocava muita música…
O menino Bel, se sentava na sarjeta para ouvir as músicas, sem saber o quanto isso se tornaria importante para ele. Na época, Sobral tinha 70 mil habitantes e era um polo exportador de carne e algodão, beneficiada pela estrada de ferro que a ligava ao porto de Camocim, no litoral norte do estado. Sobral ficou mundialmente famosa por ter recebido durante o eclipse de 1919, uma comissão científica estrangeira, que ajudou Albert Einstein a comprovar a Teoria da Relatividade. Este feito é considerado por alguns historiadores, e pela maioria dos sobralenses, como o marco do início do mundo moderno. O impacto disso na pequena cidade é notável, pois Sobral passaria a parir filhos ilustres e orgulhosos, como Renato Aragão e Luiz Carlos Barreto. Ciro Gomes e toda sua família de políticos também são de Sobral. Mas, o preferido, claro, é Belchior, que herdou o humor e os trejeitos regionais que nunca abandonou, como por exemplo a voz fanha, uma característica marcante do cantor.
A religião tem forte influência na formação artística e intelectual de Belchior. Sua mãe foi cantora do coral da igreja, onde o bispo Dom José Tupinambá da Frota, durante décadas, foi o homem mais influente de Sobral, principalmente entre os jovens. Tanto, que Belchior resolveu por conta própria ir estudar no seminário do bispo, a melhor escola da cidade na época. Em seguida, Bel decide se aventurar em Fortaleza, onde foi morar na casa de um tio.
Na capital, ele cursou o segundo grau em uma escola pública de elite. Foi quando conheceu Luís de Camões e Gonçalves Dias. Bel teve acesso aos mesmos clássicos literários que formaram grandes pensadores e, desde muito cedo, já se aventurava a dar conselhos e pregar ensinamentos que não eram compatíveis com sua pouca idade.
Frequentando a igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Fortaleza, Bel teve contato com os frades Capuchinhos e decidiu ingressar na ordem Franciscana do Frei José de Manaus. Ele passou três anos no seminário e o seu objetivo era muito claro… Bel queria ser um sacerdote. Os cantos gregorianos eram parte da rotina diária que influenciaram o seu estilo de cantar e é nessa fase que ele desenvolve sua personalidade serena, com jeito manso e calmo de comunicar.
Belchior estudava teologia e filosofia e era um dos seminaristas mais brilhantes. Conseguia por exemplo recitar páginas inteiras da Bíblia. Fazia isso até em outras línguas se lhe pedissem. Mas, um belo dia, aproximou-se do diretor do seminário e disse que queria ir embora. “Pois então pode ir”, respondeu o diretor. Assim, após três anos, levando consigo somente as roupas do corpo, Belchior volta para a casa dos pais.
A vontade de ser santo simplesmente havia passado. Bel se entregou aos prazeres carnais e, segundo suas próprias palavras, isso aconteceu após contratar os serviços de uma profissional.
Agora, Belchior tinha outro projeto: estudar medicina, que também era a vontade dos pais. Como era muito inteligente, os ensinamentos adquiridos no seminário foram suficientes para que prestasse o vestibular e passasse de primeira na Universidade Federal do Ceará. Foi na Faculdade de medicina que Belchior literalmente descobriu a música, aprendeu a tocar violão de forma autodidata e assumiu o visual característico que o eternizou, cultivando os cabelos longos e o belo bigodão preto.
Mesmo novato, mas seguro de sua arte, Bel procurou Fausto Nilo, um veterano do curso de arquitetura e organizador dos eventos culturais da faculdade. O engraçado é que, poucos anos antes, Fausto conheceu Belchior com uma batina de seminarista e cabeça raspada enquanto dava conselhos religiosos na praça do centro de Fortaleza e, agora, o mesmo maluco estava à sua frente, com um violão debaixo do braço, roupas velhas e visual hippie. Belchior perguntou se poderia mostrar suas músicas e, ali mesmo no pátio da universidade, começou a tocar e cantar. Fausto lembra que achou a voz dele péssima e fanhosa, mas Belchior, com sua autoestima inabalável, passou a cantar ainda mais alto, chamando a atenção inclusive dos transeuntes, que pararam para ouvi-lo…
Fausto, olhando para os lados, tentou contornar e disse: “Calma rapaz, deixe para cantar no show.”
Nesse dia Belchior conseguiu sua primeira apresentação. Isso só aconteceu porque, apesar de Fausto não ter gostado da sua voz, percebeu que existia algo provocativo naquelas letras.
Essa é a versão de 1973 de “A Palo Seco”, uma das imortais canções de Belchior e que reflete perfeitamente a força que ele tinha em seu canto torto, que poderia até ser confundido com um desespero, mas era só a moda passageira em 73. Deixa tocar mais um pouco, Cocão…
Para Bel, a música era algo meio espiritual. Ele havia encontrado uma forma excitante de se expressar aplicando toda sua identidade intelectual, que conflitava com seu espírito livre, que ele traduziu na necessidade de viver intensamente… Belchior é conhecido como o “Poeta da Vida”. Em suas músicas sempre encontramos conselhos para que se viva a vida intensamente. Vale lembrar, também, que Belchior nunca quis explicar a vida e teorizar sobre a existência humana. Mesmo tendo conteúdo suficiente para isso. É que ele não estava interessado em nenhuma “tioria”. Amar e mudar as coisas ao seu redor lhe interessava mais.
Belchior poderia ter sido um famoso escritor ou poeta, mas a influência das pessoas com quem ele convivia e o momento cultural do país o levaram para a música. Os encontros no Bar do Anísio, com músicos e poetas como Raimundo Fagner, Augusto Pontes, Jorge Mello, Amelinha, Petrúcio Maia, Wilson Cirino, Ednardo, Rodger Rogério e Téti inundaram a mente de Bel com possibilidades jamais imagináveis para um garoto de Sobral. Alguns desses que citei depois vieram a gravar o icônico álbum “Pessoal do Ceará”, e a primeira composição importante de Bel, “Mucuripe”, feita em parceria com Fagner, foi apresentada e discutida nestes encontros no Bar do Anísio.
“Meu filho, eu não te proíbo de ir. Mas termine a faculdade. Só falta um ano e pouco, você termina e vai” disse, desolado, o pai de Belchior, ao tomar conhecimento de que o filho, prestes a se formar em medicina, estava abandonando o curso para se mudar para o Rio de Janeiro com amigos, onde iria se dedicar à música. A mãe também tentou chamá-lo à razão: “Não vá agora. Você indo como médico estará mais seguro”. Mas, nada fez Belchior mudar de ideia, e foi quando ele disse a frase que seria eternizada: “Eu vou, mamãe, viver ou vou morrer de música. Eu vou!” Assim em 1971, mais um nordestino deixava sua casa na ambição de se tornar alguém no Rio de Janeiro.
É, amigos… Essa aí se chama “Fotografia 3×4”, e qualquer pessoa que precisou sair de casa para se arriscar por um sonho vai sempre se identificar com ela. Meu bigode aqui está até crescendo… Belchior, né, amigos… Representante de uma geração de artistas e pessoas anônimas… Mas, péra lá… Nada foi divino, nada foi maravilhoso. Pelo contrário: passaram por muitos perrengues.
Belchior dividia um apartamento na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, com os cearenses Fagner, Cirino, Jorge Mello e o baiano Rui Pimentel. Foram momentos de adaptação, mas, naquele ano, uma música assinada por Belchior venceu o IV Festival Universitário da MPB, interpretada por Jorge Telles, chamada “Na Hora do Almoço’. Consequentemente, tiveram a oportunidade de gravar o primeiro compacto de mesmo nome que foi lançado pela Copacabana.
Na cidade maravilhosa estava impossível viver da música. As gravadoras eram resistentes aos novos cantores. Então, no ano seguinte Belchior se muda para São Paulo, onde vive tempos ainda mais difíceis, precisando morar de favor em uma casa em construção e, muitas vezes, sem dinheiro até para comer. Porém, vale lembrar que Belchior era uma pessoa desprendida de luxos. Diziam até que ele ostentava a pobreza, reflexo dos anos em que viveu jejuando no seminário, o que o deixou adaptado. Ele podia passar dias sem comer. Mesmo assim, esse não era o plano. Estava faltando um pouco de sorte para o jovem cearense, e ela começou a surgir quando Elis Regina escolhe gravar “Mucuripe”, em 1972.
Elis tinha o poder de lançar compositores, porque ela transformava as composições alheias em obras próprias, através de sua interpretação única. Aliás, o sonho dos compositores dessa época era que Elis escolhesse uma música deles. Bel conseguiu e logo, Wilson Simonal resolve gravar “Noves Fora”.
E, para fechar a maré de sorte, em 1973 Lenny Andrade grava “Alvoroço”
Essas três músicas foram compostas em parceria com Fagner, um parceiro muito importante na história de Belchior e sempre lembrado em todas suas entrevistas, assim como Vinicius de Morais, Toquinho entre outros que ajudaram Bel na sua pior fase em São Paulo. Com moral na praça, logo Belchior conseguiu um contrato com a gravadora Chantecler e lançou um compacto contendo “A Palo Seco” e “Sorry Baby”, de 1973. Bob Dylan e Ray Charles eram grandes influências…
Mesmo com as baixas vendas desse compacto, os executivos da Chantecler resolvem arriscar e, em 1974, chega às lojas o primeiro LP homônimo de Belchior, que foi apelidado de “Mote e Glosa” e trazia as influências da música nordestina.
Nitidamente, existia uma obsessão de Belchior em se apresentar como uma novidade e, apesar de ser um disco incrível, não obteve êxito no mercado. Porém, como um bom sujeito de sorte que era, Bel estava sendo reconhecido como compositor. Em 1975 Roberto Carlos gravou “Mucuripe” e Vanusa gravou “Paralelas”.
Nessa fase, Belchior já estava conhecido no eixo Rio x São Paulo, mas ainda não conseguia dinheiro suficiente para pagar sequer o aluguel. Como sempre digo, não basta talento; é preciso ter sorte e estar no lugar certo e na hora certa. Elis Regina planejava lançar o seu icônico disco “Falso Brilhante” e estava à procura de compositores. Bom, sobre esse encontro, vou deixar o próprio Bel contar:
Elis e Belchior fizeram a maior e melhor parceria da música brasileira. Posso estar enganado. Provavelmente existem parcerias tão importantes quanto essa, mas, sinceramente, nesse momento não consigo me lembrar de nenhuma a não ser Elis cantando Bel… Cocão, solta também um trecho de “Como nossos pais” na voz do Bel.
Dizem que Elis foi muito bondosa, porque nesse disco gravou também “Vvelha Roupa Colorida”, mas eu realmente não vejo por esse lado. Não foi bondade. Foi uma das melhores canções do Belchior: “O passado é uma roupa velha que não nos serve mais”. Belchior reclamava da falta de investimento das gravadoras em artistas novos, porque ele era um deles. Na versão de Elis, ela flertou com o rock-and-roll, mas na versão do Bel a gente gosta também.
Elis vendeu meio milhão de cópias e, com o dinheiro que ganhou, Belchior saiu do perrengue. Logo, aprendeu a praticar yoga e passou a frequentar congressos de meditação. Em um deles, na cidade de Bertioga, conheceu Ângela Margareth Henman, filha de ingleses que estava retornando de um retiro espiritual na Índia. Belchior era ainda um cantor de pouca expressão, apresentou-se tocando violão no final do congresso e encantou a jovem com seu ar de frade libertino. Moral da história… Casaram-se em 1976, mesmo ano em que nasceu a filha, Camila. Depois veio Mikael, em1981.
Com o coração em dia e, agora sim, se considerando um verdadeiro sujeito de sorte, eis que chega o momento de Belchior brilhar. Ano passado ele morreu, mas, em 1976, após o lançamento de “Alucinação”, Belchior se tornou imortal.
Alucinação é fruto de um contrato com a Phonogram e foi produzido por Marco Mazzola. Graças ao empurrão de Elis, o álbum vendeu 30 mil cópias só no primeiro mês, e mais de 500 mil com o tempo, consagrando Belchior como um ídolo da música brasileira ou, como ele gostava de brincar, o maior nome da MPB.
A radialista e pesquisadora da USP Josely Teixeira Carlos diz que “esse disco resume o sentimento de toda uma geração brasileira, interiorana no meio da cidade grande”. Segundo “O Globo”, em “Alucinação” Belchior exprimiu a urgência do jovem brasileiro. Era o novo finalmente chegando aos novos brasileiros.
O biógrafo de Belchior, Jotabê Medeiros, observa que esse disco vem com a perspectiva de romper com as velhas estruturas, enunciadas em “tom de conselho de irmão mais velho, de pessoa experiente que parece saber desviar de todas as balas e dos punhais do caminho”. O curioso desse depoimento é que o próprio Bel gostava de repetir a seguinte frase: “A experiência é um pente que você só adquire quando já ficou careca”.
Eu afirmo, com certeza, que Alucinação deixou muita gente mais experiente e é nesse disco de 1976 que também está o tema do episódio 50 do Clube da Música Autoral. Caro amigo Cocão, chegou a hora das “tiorias”, porque, a partir de agora, com respeito e sem ser vago vamos discorrer sobre “Apenas um Rapaz Latino-Americano”.
Belchior, esteja você onde estiver, queria te dizer que eu também sou um rapaz latino-americano sem dinheiro e vindo do interior. E digo mais: conheço ao menos 10 pessoas que também são e choram ouvindo essa música, porque dói ser tratado com indiferença por causa de sua condição social. Existe uma legião de pessoas que se identifica com essa frase, porque Bel representa os migrantes que sofrem discriminação em seu próprio país, e fala também com quem sofre com a desigualdade. Desde que me conheço por gente, no Brasil é assim: ou você tem dinheiro no banco, ou você tem parentes importantes, do contrário… cale-se. Daí vem Belchior e nos dá a voz que injustamente nos foi tirada.
“Apenas Um Rapaz Latino-Americano” é a canção de assinatura de Belchior e, para entendê-la, é preciso sair dos nossos sapatos confortáveis para calçar o sapado de uma época em que não vivemos. Ou, se preferir, a velha roupa colorida que não nos serve mais.
O termo “latino-americano”, por si só, já contém preconceito no contexto histórico e geográfico, visto que a América é um continente dividido em Norte, Sul e Central, mas, separando os Estados Unidos, tudo o que vem ao sul é considerado latino, submundo, terceiro mundo, dependentes das riquezas do Tio Sam.
“Apenas Um Rapaz Latino-Americano” foi escrita em um período denominado “Anos de Chumbo”, quando os Estados Unidos haviam aumentado sua influência política apoiando o regime militar não só no Brasil, mas também no Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru e Paraguai, países que viviam sob regimes totalitários.
A arte pode ser considerada a tal navalha, que corta a carne de algumas pessoas ao conseguir expressar sentimentos reprimidos. E, durante o regime militar, foi nutrida a errônea compreensão. por parte do governo, de que artistas eram perigosos. Muitos foram perseguidos, tiveram suas obras censuradas, foram exilados e, alguns, foram “desaparecidos”.
Belchior e seus amigos artistas do Ceará vieram parar no olho do furacão, sem dinheiro e sem parentes importantes, tentando sobreviver da arte, exatamente em uma época onde a classe estava sendo perseguida pelo estado. Dá pra imaginar?
Em uma entrevista, Belchior falou sob a óptica do “eu lírico” da canção:
“Ele é uma pessoa na esquina do mundo, uma pessoa do Terceiro Mundo, uma pessoa na expectativa. Uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia do espírito, de novidade, de transformação, de poder novo.”
Novamente temos Belchior falando sobre a novidade, sobre o novo. Beirava obsessão. Mas, além das questões políticas, tinha muito a ver com uma rusga bem menos importante do que a simbologia dessa canção, e que pode ser traduzida de “Tropicalistas” versus “Pessoal do Ceará”.
Na frase: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso”
Pois bem, isso é um chute bem dado na canela dos tropicalistas, em especial do Caetano Veloso, que em parceria com Gilberto Gil lançaram na voz de Gal Costa em 1968 a música “Divino Maravilhoso”, aquela que Bel ouviu no rádio e trazia de cabeça como um mantra de boas-vindas ao sair do Nordeste.
Bel, quando chegou ao Rio, percebeu que nem tudo era lindo e maravilhoso. E é bem provável que o pessoal do Ceará tenha se deparado com uma panelinha dos tropicalistas, da qual faziam parte “Os Mutantes”, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, todos presentes no disco “Tropicália ou Panis et Circencis”, de 1968, um disco que é considerado como a base do movimento tropicalista.
No final dos anos 60, na TV Tupi em São Paulo, estreou o programa “Divino Maravilhoso”, comandado por Caetano e Gil. Frequentemente participavam Jorge Ben, Os Mutantes, Gal Costa, Maria Betânia, Chico Buarque, enfim, era uma panelinha que irritou o pessoal do Ceará e motivou Belchior na teoria do novo, sendo os tropicalistas, na minha compreensão, ex-jovens com ideias ultrapassadas e, os cearenses, os autênticos revolucionários da nova fase.
Tenho ouvido muitos discos e conversado com pessoas e ó… ninguém acredita nisso não. Apesar de ter servido para definir o desacreditado governo militar dos anos 70, Belchior novamente se refere ao “Divino Maravilhoso” e aos tropicalistas… Tudo muda e, com toda a razão, Bel pede: me deem um espaço para mostrar a minha arte… E enfatiza: esse é o pedido de um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, ou seja, que não pode se auto financiar nessa cruel e seletiva indústria da música. Pior! Não tem amigos importantes que o coloquem em contato com quem poderia facilitar o processo.
Ao criar metáforas para exigir o seu espaço ao sol, Belchior nos entregou palavras que forjaram uma ideia em comum, uma consciência que valorizava as ideias jovens e representava o novo. Aliás, uma nova geração, que também queria participar dessa iminente revolução que chegava lentamente ao seu gargalo. Criticar o tropicalismo pode ter sido sorte, mas, lembrem-se, Belchior era “um sujeito de sorte”.
O proibido de Belchior é mais uma provocação a Caetano, que em 1968, durante o endurecimento do regime militar, fase do AI-5, compôs “É Proibido Proibir”. Logo, foi desclassificado e amplamente vaiado durante o III Festival Internacional da Canção. Bel o provoca ao dizer que o regime militar havia avançado e que aquela movimentação ideológica dos tropicalistas havia sido em vão. Ou seja, eu sei que tudo é proibido, aliás, tudo é permitido… A ditadura tá aí e cadê vocês? Após o exíilio, Caetano e a maioria dos tropicalistas haviam lançado músicas brandas, isto é, que não batiam de frente com o regime totalitário.
Seria esse o atalho para o sucesso? Bel já logo avisou… Não me peça para fazer uma canção como a sua, suave e muito linda… Insinuando que preferiria o anonimato… Palavras, amigos, elas são navalhas e Belchior estava afiadíssimo…
No episódio 41 dessa mesma temporada, falamos de uma história parecida com essa, protagonizada por Neil Young e a banda Lynyrd Skinyrd, que usou o engajamento político do velho Neil para catapultar o maior sucesso deles: “Sweet Home Alabama”. Ressalvadas as devidas proporções e particularidades, o que houve com Caetano e Belchior foi parecido: Bel usou Caetano como trampolim e deu muito certo. Como eu disse, essa é a música de assinatura do “Rapaz Latino-Americano” que, em 2001, falou sobre a citação ao cantor baiano:
“Considero Caetano um poeta estupendamente harmônico e lúcido. A questão que aparece em “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” é complementar por oposição. Traduzindo: há momentos em que você pode dizer que tudo é divino e maravilhoso, e há momentos em que você tem que dizer que nada é divino e maravilhoso.”
Bel, com toda a experiência que ele adquiriu no decorrer dos anos, usou de sua mais célebre frase para justificar que “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” era uma antiga roupa colorida que já não lhe serve mais.
Caetano, por sua vez, nunca respondeu às provocações de Belchior na imprensa, afirmando que quando “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” fora lançada, a Tropicália já estava morta, sem nunca levar isso para o pessoal. Mas, quando Belchior morreu, em 2017, Caetano resolveu se pronunciar sobre o assunto escrevendo que “Todas as citações a canções nossas que estavam em trechos de canções de Belchior me agradavam por estarem dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante.”
Ou seja, mesmo quando criticou, Belchior agradou.
Cocão:
É, Gilsão… Belchior era mesmo um gênio. Na gravadora todos já sabiam que essa música seria sucesso, antes mesmo do lançamento em 1976, e decidiram que o nome do álbum seria “Apenas um Rapaz Latino-Americano”. Mas, Belchior e o produtor Marco Mazzola, após ponderar possibilidades, resolvem mudar para “Alucinação”,
Na verdade, eles temiam a reação do “antigo compositor baiano”, que não foi citado só nessa canção não. Em fotografia 3 X 4, Belchior canta: “Veloso o sol não é tão bonito pra quem vem
Do norte e vai viver na rua”.
O temor de Mazzola e Belchior, era que Caetano os processasse, já que ele era muito influente, afinal de contas, ele era líder do Tropicalismo e envolto de parentes importantes.
E Gilsão… Se me permite, dessa vez eu gostaria de indicar a versão para encerrar o episódio.
Fique à vontade, Cocão!
Cocão:
Então se liga só: Existe um projeto chamado “Belchior Blues”. São Versões das músicas do Belchior na pegada do blues.
A gente vai ficar com “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, beleza?
Valeu!
Lembro que todas as músicas citadas nesse podcast estarão em uma playlist no Deezer, YouTube e Spotify. Ouçam Belchior sem moderação… E, se você vê valor no que fazemos, cogite a possibilidade de ser um sócio. Acesse: clubedamusicaautoral.com.br e conheça as vantagens de ser um sócio oficial.
Lembro também que, se preferir, você pode fazer um Pix para o Clube agora mesmo. Qualquer valor é bem-vindo e nos manterá motivados para a próxima temporada. Use o nosso e-mail como chave: clubedamusicaautoral@gmail.com.
Quero deixar um salve aqui para todos os sócios estrategistas do Clube, que me ajudaram com as histórias do Belchior, em especial para o Emerson Castro, que foi amigo pessoal do Bel, e ao Thomaz Ribeiro, que me apresentou o livro “Viver é Melhor que Sonhar”, da Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti, Aliás, discutimos muito sobre o desaparecimento do Belchior em meados de 2010, uma época obscura do cantor, que abandonou o carro no aeroporto e, ao lado de sua nova companheira Edna, passou a viver escondido no Uruguai e na região dos pampas Gaúchos… Mas, isso, vocês já sabem: é conteúdo para um outro episódio.
A quinta temporada se encerra aqui! Obrigado pelos comentários e fiquem ligados que logo tem episódio extra. Aviso também que o Clube não para, os Drops continuam, ok?
E, não se esqueçam: isso é somente uma canção, a vida realmente é diferente e nela… Belchior vive, toda vez que ouvimos uma música dele.
Esse podcast é um oferecimento dos sócios do Clube da Música Autoral. A revisão do roteiro é da Camilla Spinola e do Gus Ferroni. A arte de vitrine é do Patrick Lima. A edição é do Rogério “Cocão” Silva. E a produção é minha, Gilson de Lazari. Foi um prazer falar de música com vocês e até a próxima!
O melhor podcast de música do mundo!!!