Nesse episódio, vamos refletir como a carne mais barata do mercado, ganhou o peso de uma tonelada, com a vida e obra de “Elza Soares,” a mulher do fim do mundo.
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Roteiro e locução: Gilson de Lazari
Revisão: Camilla Spinola e Gus Ferroni
Transcrição: Camilla Spinola
Arte da vitrine: Patrick Lima
Edição de áudio: Rogério Silva
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Ela já foi vítima de violência doméstica e teve que “espantar os urubus pra pegar o resto de comida que estava no lixo”. Porém, aparece na lista das 100 maiores vozes da música brasileira, elaborada pela revista Rolling Stone.
Se você gosta de boas histórias, então se aconchegue, porque o assunto de hoje é Elza Soares e sua mais impactante canção… A Carne (Negra)
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Os episódios do Clube são bem detalhados. Contamos a história do autor ou autora, sempre com muito respeito e sem ser vago. E, para a interatividade acontecer, você pode acompanhar a gente nas redes sociais, comentando nossos posts, que trazem mais conteúdo e curiosidades sobre os temas dos episódios. Os melhores comentários, além de nos ajudarem a divulgar e melhorar o Clube, também serão lidos no episódio extra, onde Cocão e eu analisaremos a quinta temporada. Estamos no Facebook, Telegram, Instagram, Twitter e YouTube. Procure por Clube da Música Autoral que só de seguir você já começa a fazer parte desse clube.
Elza Soares, amigos, que história… que história! Ainda não sei sequer defini-la. Talvez ao final desse episódio você me ajude, mas é importante creditar a ideia ao Cocão. Ele vem analisando o pedido dos ouvintes por mais episódios sobre mulheres na música. Aliás, ele mesmo vem produzindo alguns Drops e me alertou que, por trás da voz rouca de Elza Soares, havia histórias arrepiantes e que se encaixariam no enredo do Clube. E eu assino embaixo… É difícil até analisar um momento mais importante dessa jornada. Elza, em um certo ponto da sua longínqua carreira, encontrou-se estagnada. “Depois de tanta coisa, talvez fosse a hora de descansar”, pensou ela. Mas, uma voz do além a contrariou e trouxe Elza de volta aos palcos. Quero começar nossa história de hoje emprestando trechos do artigo escrito pela jornalista Marina Martini Lopes.
Elza Soares vê anjos. “Ela me chamou um dia quando estava indo embora, já dentro do carro, de porta fechada, e falou assim pela janela: ‘Menino, você pode não acreditar no que eu vou falar, mas, desde a primeira vez em que encontrei você, eu vejo um anjo sobre a sua cabeça. Uma mulher mais velha, de cabelos brancos, lenço na cabeça. Não sei o que é, mas me parece um anjo.”
Quem conta isso é Pedro Loureiro, atual empresário e responsável pela carreira da Elza Soares. Pedro afirma que a descrição feita por Elza batia com a aparência de sua mãe, que havia falecido vítima de um câncer poucos meses antes daquele encontro entre os dois. A declaração feita pela cantora mexeu com Pedro de tal maneira que ele se afastou dela. Mas, Elza insistiu e, alguns meses depois, ela o convidou para um almoço em sua casa e voltou a falar da tal visão. “Sabe aquele anjo de que eu te falei um dia?”, perguntou ela. “Eu sonhei com ela algumas vezes e, no sonho, ela aponta para você e me diz que você tem algo pra me dar. Que você vai transformar minha vida, e eu vou transformar a sua.”
O ano era 2014, e Elza Soares passava por um período complicado, tanto pessoal quanto profissional. Para o grande público, estava “sumida”: seu último lançamento havia sido uma coletânea de 50 anos de carreira, chamado “Deixa a Nega Gingar”, em 2009. Foi a partir de outubro de 2015, depois da perda do filho Gilson, morto aos 59 anos em consequência de complicações de uma infecção urinária, que Elza resolve gravar o seu primeiro disco de músicas inéditas chamado “A Mulher do Fim do Mundo”. Foi quando Elza renasceu musicalmente: o disco, é fruto dessa parceria com Pedro Loureiro e foi produzido por Guilherme Kastrup, misturando gêneros como o samba, o rap e a música eletrônica e, detalhe, esse é o primeiro disco de inéditas da artista, com letras que falam de feminismo, violência doméstica e negritude – todos assuntos de que Elza entende muito bem.
O trabalho a levou ao palco do Rock In Rio pela primeira vez, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira e foi eleito pelo The New York Times como um dos dez melhores do ano, ao lado de obras de ícones como David Bowie e Beyoncé.
Quando essa revolução começou, Elza já trabalhava com Pedro e com outros integrantes de uma equipe que foi, aos poucos, construindo em torno de si. Em 2018 e 2019, ela lançaria ainda os igualmente aclamados “Deus é Mulher” e “Planeta Fome”, este último premiado com o Grammy Latino.
Ou seja, o sucesso não foi por acaso: é resultado de um projeto, um plano de longo prazo, pensado e executado para, nas palavras de Pedro Loureiro, voltar a celebrar uma artista que, antes de 2015, “estava sub-homenageada”.
Você acredita em mensagens do além? Nessa indústria da música, como é sabido, precisa de talento e sorte. Mas, Elza contou com uma ajuda a mais: o conselho daquele anjo. Inicialmente, Pedro foi contratado sob o burocrático título de Diretor de Marketing e Planejamento Estratégico, mas em certo ponto a cantora decidiu que o queria como empresário. Pedro não aceitou. Porém, na primeira vez em que ela participou do programa Conversa com Bial, da Globo, Elza simplesmente apontou para Pedro Loureiro e o também parceiro de trabalho Juliano Almeida, que estavam na plateia, e os apresentou em rede nacional como “seus novos empresários”.
“E naquele momento eu me tornei oficialmente empresário dela”, ri Pedro ao se lembrar de que, quando Elza decide algo, ela insiste.
A segurança e a determinação, no caso de Elza Soares, são mais que traços de personalidade: são escudos essenciais para uma mulher que viveu a vida que ela viveu. Os detalhes são conhecidos, e já foram recontados em diversas reportagens e biografias – Inclusive foi tema no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2020, no último carnaval antes da pandemia.
Elza sofreu com violência doméstica; trabalhou como empregada e lavadeira. Sem falar que viveu paixões avassaladoras e foi até culpada pelo declínio de um herói nacional: Mané Garrincha. Essa passagem da vida de Elza é uma das mais emblemáticas e, para contá-la em detalhes, Cocão, vamos voltar essa fita.
Esse é o tema da copa do Mundo de 1962 e você não ouviu errado, não. É um rock cantado em castelhano por Los Rambles… A Copa de 62 foi disputada no Chile. A grande campeã, como sabemos, foi a Seleção Brasileira, que havia conquistado o caneco em 58 também. Por isso, naturalmente, manteve a maioria dos jogadores como Gilmar, Djalma Santos, Nilton Santos, Didi, Zagallo, Vavá, Pepe, Zito, Bellini, Pelé e Garrincha.
Na primeira partida do Brasil, a grande estrela Pelé marcou seu primeiro gol, mas se contundiu logo no segundo jogo contra a Tchecoslováquia. Foi bem sério e Pelé teve que abandonar a competição. A partir deste ocorrido, muitos dizem que aquela deixou de ser a “Copa do Pelé” para ser a “Copa do Garrincha”, que foi considerado o melhor jogador da Copa de 62, e um dos grandes responsáveis pela conquista brasileira, sagrando-se inclusive o artilheiro da competição.
Garrincha, com suas pernas tortas, imediatamente se torna o queridinho do Brasil e, em uma entrevista após a conquista da Copa, ele comenta sobre uma força que o ajudava.
Apesar de não citar o nome de Elza, Garrincha se refere a ela ao citar a tal força que o fazia ir pra cima dos zagueiros. Mas “Quem era essa mulher com tamanho poder”, se perguntava o mundo todo através de seus correspondentes… Elza, havia sido convidada para ser madrinha da seleção brasileira, e acompanhou o time até o Chile, pois também cantaria o hino nacional na abertura. Nos ensaios havia muitos músicos de vários países e, enquanto Elza cantava, começou a ouvir um som de trompete. Olhou para trás e viu um negro alto improvisando sobre a voz dela. Era ninguém menos do que Louis Armstrong, que também estava presente para a cerimônia. Elza conta que não fazia ideia da existência do jazzista que, como todos sabem, tinha um estilo de voz rouca parecido com o da Elza e, ao fim do ensaio, Louis a convidou para seu camarim… Elza lembra que cometeu muitas gafes.
Imagina se Elza tivesse ido embora com Louis Armstrong em 1962, no que ela teria se transformado? Nunca saberemos, isso é coisa de universo paralelo, assim como Tim Maia: o que teria acontecido se ele não tivesse sido deportado dos EUA? Nunca saberemos. Mas, toda essa moral só aconteceu por causa do disco revolucionário que Elza gravou em 1961, fundindo o jazz com a bossa nova que foi nomeado de “A Bossa Negra”.
“A Bossa Negra” é um disco revolucionário para a música brasileira e já começa por seu nome provocador, cunhado por Ronaldo Bôscoli. Segundo a própria Elza, este foi um momento em que ela se identificou com o suingue de João Gilberto, o que é óbvio, sendo a bossa negra de João consideravelmente mais “suingada” que a bossa branca de Tom e Menescal. Elza desfila seu arsenal de possibilidades vocais pela primeira vez nesse disco. São entonações e articulações vocais que podem variar de forma vertiginosa da ironia ao drama, do barroco ao minimalismo, da irreverência ao lirismo… Mas, a música que premeditou o “Bossa Negra” e também levou Elza para a Copa como madrinha da seleção canarinho foi “Edmundo (In the mood)”.
Quando Louis Armstrong chegou ao ensaio, era essa música que Elza estava cantando… Enfim, o foco aqui é o Garrincha. Elza confessa que já tinha uma queda pelo boleiro, mas só o conheceu durante a campanha de promoção da copa de 62. Ela foi fazer um show na concentração e no lugar não tinha onde trocar de roupa. Aí veio um moço e ofereceu o quarto dele para ela trocar de roupa. Depois Elza fica sabendo que aquele moço era o famoso Garrincha e, quando lhe ofereceram uma rifa afirmando que era para comprar um carro pro Garrincha, ela comprou todos os números e lhe deu o carro. Garrincha era casado e rolou um relacionamento extra conjugal que abalou a sociedade brasileira devido à popularidade dos dois na época. Elza acabou sendo acusada de terminar com o relacionamento do craque. Os ataques foram aumentando e a família de Elza passou a receber cartas e ligações telefônicas com xingamentos e ameaças. Na mesma época, ela gravou o samba “Eu Sou a Outra”, cuja letra enfureceu ainda mais a imprensa e a opinião pública.
Fora de campo, o bicampeão mundial Garrincha também flertava com a arte e tinha um gosto musical que cativou Elza desde o início. “O Mané era louco por Frank Sinatra, Celia Cruz e Billy Holliday. Aliás, ele dizia que eu me parecia muito com a Billy.”, comenta Elza.
Apesar de ter enfrentado o machismo e sofrido com o alcoolismo de Mané, Elza considera um episódio ocorrido durante a Ditadura Militar, em 1969, como o pior momento que ela viveu ao lado do bicampeão mundial. “Nossa casa foi metralhada e tivemos 24 horas para deixar o país. Fiquei marcada porque participei de um show do Geraldo Vandré, que era visado por ser um artista de esquerda. Fomos para Roma, onde moramos durante mais de dois anos.”
Depois da aposentadoria dos campos, Garrincha tornou-se alcoólatra e passou a agredir fisicamente Elza que, apesar de em uma ocasião ter chegado a ficar com dentes quebrados, nunca denunciou o marido. Pelo contrário, em suas entrevistas inevitavelmente sempre surge o assunto Garrincha, então, para fugir dos tabloides sensacionalistas, Elza adotou um discurso decorado em que afirma ter sido o maior amor de sua vida e que o alcoolismo do marido era uma doença, sem maiores detalhes. Dessa experiência de violência doméstica, muitos anos mais tarde, surgiu a canção “Maria da Vila Matilde”.
A verdade é que Elza abandonou sua carreira para cuidar do alcoolismo de Garrincha, mas a sociedade nunca deixou de criticá-la. Elza e Garrincha sofriam ataques anônimos, ligações, ameaças e até pedras arremessadas contra a residência. O que a mídia queria era um Garrincha exemplo, patriota, mas ele nunca foi esse cara, então, culparam Elza de ser a má influência.
Na pior fase, Garrincha promete a Elza que pararia de beber caso ela lhe desse um menino. Ela concorda, mas ele quebrou a promessa logo após o nascimento. Elza o flagrou alcoolizado segurando o filho por uma perna e ameaçando jogá-lo escada abaixo. Então, com 17 anos de união, ela decidiu deixá-lo para sempre. Um ano depois, após uma série de problemas financeiros, Garrincha faleceu aos 49 anos, no dia 20 de janeiro de 1983, vítima de cirrose hepática na sequência de um coma alcoólico, no Rio de Janeiro.
De 1959 a 1973, Elza lançou pela gravadora Odeon uma série de singles e álbuns que evidenciaram a bossa negra da voz rouca. Ela era ótima nas divisões rítmicas e cheia de malemolência.
Em essência, Elza Soares atravessou duas décadas como hábil cantora de sambalanço. E vale lembrar do quarto álbum da discografia da artista, “Sambossa”, que era o samba tipo exportação.
Elza morou uma época nos EUA e outra época na Europa. Após voltar ao Brasil, descobriu que sua gravadora Odeon havia cedido todo o seu repertório à nova promessa deles, sua amiga Clara Nunes. Mesmo assim, Elza tentou emplacar um novo projeto: um disco em parceria com Roberto Ribeiro, onde a maioria das músicas era composta por ele, e conectavam Elza a sua origem humilde da favela. A gravadora relutou pois Roberto era um desconhecido e cantor de escola de samba, desacostumado ao estúdio. Era uma desculpa atrás da outra e, quando finalmente aceitaram gravar, recusaram retratar Roberto na capa. A desculpa era de que ele era feio, mas Elza suspeitava de discriminação racial, o que se confirmou quando, segundo ela, um diretor disse: “Não quero esse nego feio e sujo na capa!”. Elza disse que, ou o disco saía com os dois na capa, ou eles a perderiam. E o disco saiu: “Sangue Suor e Raça”, de 1972.
Após o ocorrido, a relação com a Odeon se deteriorou e Elza foi para a então recém-inaugurada Tapecar, promovendo uma serie de turnês pelos Estados Unidos e Europa. Na década de 80, apesar de algumas apresentações e gravações bem sucedidas, Elza teve um período de depressão e desleixo que a fez cogitar encerrar a carreira, mas o convite de Caetano Veloso, para que ela gravasse com ele “Língua” em seu álbum de 1984, mudou os planos.
Em 1986, poucos dias após a morte do filho Garrinchinha, Elza surpreendeu Lobão e apareceu no estúdio onde ele gravaria e fez uma participação em “A Voz da Razão”, do então futuro disco do cantor, “O Rock Errou”, de 1986.
Elza era assim: ela era samba, era rock, era soul, era atitude e flertou com o rock em outros momentos também, como na parceria “Milagres”, com Cazuza.
Em 1989, Elza recebeu um convite para se apresentar nos Estados Unidos, para onde foi em novembro. Ficou lá por mais de um ano, pulando de show em show, sem um caminho definido e voltou para o Brasil em agosto de 1991, período onde enfrentou outra crise. Envolveu-se com uma seita religiosa, casou-se para conseguir um green card e afirma ter levado um golpe de empresários que depois sumiram – Elza acabou sendo acusada de ser a golpista. Mas continuou gravando, e tomando golpes da gravadora.
Em 2000, Elza foi premiada como “Melhor Cantora do Milênio” pela BBC em Londres, quando se apresentou num concerto com Gal Costa, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Virgínia Rodrigues. No mesmo ano, estreou uma série de shows de vanguarda, dirigidos por José Miguel Wisnik, no Rio de Janeiro. Em Londres, apresentou-se no Royal Albert Hall, mesmo tendo sofrido uma forte queda alguns dias antes, o que lhe rendeu uma semana no hospital e a atenção de enfermeiras em sua casa para se recuperar.
E em 2002, o meu álbum preferido, “Do Cóccix até o Pescoço”, garantiu para Elza uma indicação ao Grammy.
Essa canção se chama “Dura na Queda” e foi escrita por Chico Buarque para Elza Soares. Com direção artística de Zé Miguel Wisnik e produção de Alê Siqueira, “Do Cóccix Até O Pescoço” é um marco da produção fonográfica brasileira. Conecta samba e rap, couros e beats, lirismo e protesto, tradição e modernidade, e mostra que a arte da deusa mulher do fim do mundo reflete o presente em qualquer época.
A imprensa voltou a falar de Elza. Nas manchetes diziam “Álbum devolve Elza Soares à excentricidade”.
O lançamento impulsionou numerosas e bem-sucedidas turnês pelo mundo. Mas tinha uma composição nesse disco que trazia de volta a afronta jovem [justa?]: aquela que é legítima, mas pode prejudicar. Dificilmente uma artista consagrada como Elza Soares daria voz a uma composição que dizia em seu refrão “a carne mais barata do mercado é a carne negra/que vai de graça pro presídio e pra debaixo do plástico”. Mas, Elza não é só uma artista consagrada; ela é representante de uma geração e, contrariando a todos, deu voz para “A Carne” que dá título ao episódio 46 do Clube.
Em uma entrevista de 2003, sobre o disco “Do Cóccix Até O Pescoço”, um repórter perguntou para Elza por que a Carne mais barata do mercado era a carne negra. E ela respondeu… enfática: “PORQUE É!”.
Depois de alguns segundos constrangedores, ela continuou: “A gente sabe que pro negro tudo é muito difícil. Você não vê o destaque do negro em primeiro. Em nada. Ele não é protagonista em nada. Então a carne mais barata do mercado chama-se carne negra.”
Elza estava visualmente irritada, pois a canção “A Carne”, escrita por autores desconhecidos, chamava mais atenção que as outras músicas do disco escritas por Caetano Veloso, Chico Buarque e Jorge Ben. A irritação era porque Elza sabia que o repórter queria tirar palavras dela que iriam polemizar, trazendo à tona de novo um velho tabu… o racismo.
Meio sem jeito após Elza falar que o negro não é protagonista em nada, o repórter completou… “Nem na música?”.
E Elza disse: “Sim, na música sim. Mas, você sabia que o principal autor dessa canção é branco? Seu nome é Marcelo Yuka. E eu a ouvi pela primeira vez na voz do Seu Jorge, que a gravou com o Farofa Carioca. Senti a força que a música tinha, apesar de que ela não tinha tido grande repercussão na época. Eu não achava que era música só para um grupo de pessoas ouvir. Era pra todo mundo abrir bem o ouvido e me escutar gritando que a carne mais barata do mercado é a carne negra.”
Elza Gomes da Conceição nasceu em uma família muito humilde, composta por dez irmãos, na favela da Moça Bonita, atualmente Vila Vintém, no bairro de Padre Miguel, e ainda pequena mudou-se para um cortiço no bairro da Água Santa, onde foi criada.
Sua infância foi paupérrima, porém feliz para uma criança naquela situação, que entre brincadeiras precisava ajudar a mãe nos serviços domésticos, levando latas d’água na cabeça e disputando com os urubus por restos de carne no lixo.
Aos doze anos de idade, Elza foi obrigada pelo pai a abandonar os estudos e casar-se com Lourdes Antônio Soares, um amigo de seu pai conhecido como Alaordes, que havia tentado abusar de Elza – o pai acreditava que “a honra de sua filha só estaria limpa com o casamento”. Elza sofreu muito neste matrimônio arranjado, por conta da violência doméstica e sexual à qual era constantemente submetida. Aos treze anos de idade ela deu à luz seu primeiro filho. Elza teve 6 filhos com seu primeiro marido. Aos 15 anos ela passa por um grande trauma: seu segundo filho morre de fome e, pouco tempo depois, seu primeiro filho também morre, pelo mesmo motivo.
Com o marido doente, acometido por tuberculose, ela passou a trabalhar como encaixotadora e conferente na fábrica de sabão Véritas, no Engenho de Dentro. Elza também cantava quando tinha oportunidade. Seu pai tocava violão e, na infância, ele lhe ensinou algumas canções. Foi no manicômio, o Instituto Municipal Nise da Silveira, que Elza, com desculpa de recolher as caixas, furtava comida. Com a recuperação do marido, um ano depois, ele a proibiu de trabalhar fora novamente, e Elza voltou a ser dona de casa.
Somente aos dezoito anos é que seu matrimônio foi oficializado e ela passa a assinar Elza da Conceição Soares. Após uma fagulha de esperança de tempos melhores, aos vinte e um anos ela fica viúva, quando seu marido tem uma nova tuberculose. Mas, existe uma outra versão, de que Elza fugiu de casa depois de Alaordes disparar dois tiros em sua direção, por ter descoberto que Elza estava trabalhando como cantora.
Em 1950, sua filha recém nascida Dilma foi sequestrada. O casal que tomava conta da menina enquanto Elza trabalhava sumiu com a neném de um ano de idade. Foram trinta anos de busca, com policiais e detetives à procura. Elza, sempre triste e angustiada, só reencontrou a filha já adulta, que não sabia de nada. Com o tempo, se aceitaram como mãe e filha. Como o crime prescreveu, o casal não foi preso. Mesmo com revolta e dor, Elza perdoou os sequestradores de sua filha.
Aos 21 anos, após ter enterrado dois filhos e um marido, Elza resolve participar do programa de calouros do Ary Barroso. Ela tinha o sonho de cantar desde a infância, mas estava mesmo interessada no dinheiro, pois tinha ainda um filho para criar, que estava com pneumonia, e temia a morte de mais um. Sozinha e sem expectativa de uma vida melhor, vislumbrando seu sonho artístico cada vez mais longe e inacessível, resolveu lutar por seu filho. Cocão, esta história já foi contada por Elza inúmeras vezes, vamos deixar que ela conte mais uma…
Tudo que Elza Soares passou lhe dá autoridade para cantar a música de letras fortes que ela transformou em protesto, “A Carne”. E, mesmo assim, ainda guarda o direito de algum antepassado da cor brigar sutilmente ou bravamente por respeito.
O poder da música é incrível, né, amigos? Através da arte, mensagens duras podem ser passadas e ainda ficar martelando na nossa cabeça por dias.
(Cocão) Gilsão, a participação de Elza no programa do Ary Barroso foi triste, mas o que ele premeditou se concretizou. Ela realmente se tornou uma cantora de cabarés, apesar de ainda estar distante de ser uma estrela. Sua primeira turnê internacional foi na Argentina em 1958. Mas ela tomou um calote do empresário que a contratou e ficou sem dinheiro para voltar, tendo de se apresentar por conta própria em boates argentinas até levantar fundos suficientes para viajar ao Rio. Nesse meio tempo, seu pai morreu sem que ela pudesse estar perto dele. Pouco tempo depois ela conseguiu sua primeira oportunidade de gravar um disco, pela RCA Victor. Contudo, foi novamente barrada pelo racismo, quando os executivos da gravadora se decepcionaram ao descobrir que ela era negra.
Bem lembrado, Cocão. Para que Elza se tornasse a madrinha da seleção em 1962, muita água passou debaixo da ponte e, vale lembrar também, que durante todos os anos em que esteve casada com Garrincha Elza sofreu preconceito da high society e até da imprensa.
Falando um pouco sobre a canção em si, Marcelo Yuka é o grande responsável pela mensagem indigesta, como eu já disse. Apesar de não ser preto, ele tinha origens humildes e um senso crítico muito aguçado. É dele também a canção que jogou o primeiro holofote no Rappa, em 1994, com uma letra, tão crítica quanto “A Carne”: “Todo Camburão Tem Um Pouco De Navio Negreiro”.
Quem inventou o apelido Seu Jorge foi Marcelo Yuka, numa brincadeira que acabou colando. Seu Jorge e Ulisses Capelete também são coautores de “A Carne”. Não é novidade que Seu Jorge também tem uma história de muito sofrimento: viveu na rua e encontrou abrigo em um Teatro, onde morou por anos até se envolver com a arte e integrar a banda Farofa Carioca, que gravou pela primeira vez “A Carne”. Ouça essa versão:
Por considerar a versão do Farofa pouco séria, Elza Soares a gravou. E, não só isso. Como eu disse no começo desse episódio, ela se reinventou na última década. Entre outros projetos autorais, ela lançou “Planeta Fome” em 2019, com esse sugestivo título, claro. As lutas sociais não poderiam faltar e Elza gravou o que seria uma conclusão de “A Carne” chamada “Não Tá Mais de Graça”, onde a carne negra recebe o peso que tem: ela agora vale uma tonelada.
Legal demais, né? Dá pra acreditar que em 2019, quando Elza Soares gravou esse disco, ela estava com 89 anos? Pois é! E essa versão tem a participação do Rafael Mike, que também foi integrante do Farofa Carioca… E é assim, valorizando a carne preta, que vamos chegando ao fim de mais um episódio do Clube da Música Autoral.
Antes de partir, quero deixar um salve para os sócios diretores Matheus Godoy, Henrique Vieira Lima, Caio Camasso, Marcelo Leonardo, Luiz Machado, Lucas Valente, Antonio Valmir Salgado Junior, Emerson Silva Castro, João Junior Vasconcelos Santos, Diego Vinicius, Jackes Liston e Liston Jr., os irmãos; sejam bem-vindos. Mais que sócios: Diretores do Clube da Música Autoral.
Se você vê valor no que fazemos, seja um sócio, acesse clubedamusicaautoral.com.br/assine e conheça as vantagens que você recebe em troca do seu apoio.
Esse podcast é um oferecimento dos sócios do Clube da Música Autoral: a arte de vitrine foi feita pelo Patrick Lima, a revisão do roteiro é da Camilla Spinola e do Gus Ferroni, a edição é dele, Rogério “Cocão” Silva, e a produção é minha, Gilson de Lazari.
Rapidinho… em 2018 estreou o Musical Elza, que reuniu sete intérpretes em curta temporada que emocionou o público. Larissa Luz interpretou Elza com sua voz característica e o momento ápice do espetáculo, claro, é quando interpretam “A Carne”, que vamos usar para encerrar esse episódio.
Foi um prazer falar de música com vocês e até a próxima.
Conheci o clube há alguns dias e vinha aqui comentar que queria ouvir a Elza Soares, ainda estou ouvindo as temporadas antigas e fiquei: COMO NÃO TEM ELZA NA TEMPORADA DAS MINAS?
Parabéns pelo trabalho, esse podcast é FODA (to ouvindo o Killing In The Name hoje)
Fala Micael, os temas da temporada das minas foi escolha dos sócios. Mas a justiça está feita! Elza no Clube era uma obrigação.
Gilson, Beleza?
Reconheço que não conhecia a historia da Elza Soares como artista musical, e este capitulo me fisgou porque tinha entre as musica o Rock del Mundial, pais de onde sou natural e que foi musica antes de eu ter nascido.
Muito bom este episodio, assim como todos os outros.
Obrigado pelas historias e boas musicas.