Hoje é dia de “toca Raul”!
Nesse episódio, além de continuarmos a história do maluco beleza, também iremos refletir sobre o que aconteceu no “Dia Em Que A Terra Parou”.
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Pedro, aonde você vai eu também vou… Raul, estava de saco cheio de ser comparado ao seu irmão, que não se chama Pedro, mas, sim, Plínio. Ao lado de Paulo Coelho, cujo pai realmente se chamava Pedro, compuseram esse clássico meio lado B, mas que se tornou obrigatório no repertório dos raulseixistas. Mais do que um grupo de fãs, eles são descendentes e sobreviventes da Sociedade Alternativa.
Amigo Pedro saiu no álbum “Há 10 Mil anos atrás”, de 1976, mas sequer foi trabalhada. Na época a gravadora investiu nas canções “Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás” e “Eu Também Vou Reclamar”.
Nos anos 70, a maioria das músicas intelectualizadas continha mensagens subliminares. Era quase que o padrão da indústria fonográfica. Os compositores, principalmente na MPB, abordavam temas proibidos e controversos em tempos de ditadura militar. E Raul era muito bom nisso, pois conseguia também ser sagaz e irônico em suas letras. Mas, às vezes ele só queria reclamar mesmo e cantar um roquezinho antigo… Afinal, como o poeta pode se concentrar na verdade do Universo, se a prestação está para vencer?
Em “Eu Também Vou Reclamar”, Raul cobrava a gravadora por mais reconhecimento artístico e financeiro. E ele foi tão genial, que a gravadora ainda promoveu essa música.
Raul ficou cansado de procurar o entendimento da lei de Thelema, a fórmula do Novo Aeon e os alicerces da utópica Sociedade Alternativa. Os preceitos de Aleister Crowley, que influenciou Beatles, Led Zepplin, Black Sabbath e tantos outros artistas nos anos 60 e 70, estavam dando bandeira demais… Paulo Coelho era a grande influência para toda essa viagem que rendeu músicas sensacionais, mantras onde podemos encontrar sentido até hoje.
Segundo a ética thelêmica, o homem tem de dar sentido a sua própria vida, tornando-se uma espécie de semideus, capaz de emergir como ser autônomo, livre dos dogmas e dos valores pré-estabelecidos pela sociedade, substituindo a fé cristã.
É claro que eles foram taxados como anticristo e, para radicalizar ainda mais, Paulo Coelho assumidamente apresentou umas drogas novas a Raul. Doidões, passaram a debater questões místicas. Paulo realmente filosofava sobre as coisas da vida e principalmente coisas da morte, mas Raul gostava mesmo era das coisas do coração, do iê-iê-iê. Misturando Elvis Presley e Luiz Gonzaga, transformava aquela brisa mística em música hippie… Um nicho do rock-and-roll tropicalista, que Raul evitava, enquanto investia no iê-iê-iê realista.
“Eu nasci há 10 mil anos atrás” é fruto dessa parceria Raul/Paulo Coelho. É bom frisar que toda essa doideira aconteceu durante a censura Militar. Imagina o quanto uns caras desses não foram perseguidos? Uns malucos barbudos pregando o conceito de uma Sociedade Alternativa para cada um fazer o que quer, e há de ser tudo da lei?
Porém, os motivos que acabaram com a amizade, são sinistro e talvez você não saiba. Mas Raul Seixas e Paulo Coelho se envolveram com rituais sombrios, e o bicho pegou… Considerando essa uma fase muito importante da história do Raulzito, peço licença para falarmos um pouco sobre Paulo Coelho, Cocão. Vamos voltar essa fita.
Segundo o jornalista Marcelo Dantas, para entender Paulo Coelho, “o mago”, é preciso antes conhecer sua encarnação anterior, Dom Paulete, o letrista – irmão siamês do cantor e compositor Raul Seixas.
Paulo Coelho de Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1947. Ele é filho de Lygia Araripe e Pedro Paulo Queima Coelho de Souza, o amigo Pedro. Oriundo de uma família de classe alta, Paulinho Coelho ingressou aos 7 anos no tradicional Colégio Santo Inácio, em sua cidade natal.
Desde cedo, gostava de escrever e mantinha seu diário hiper atualizado. No colégio, participava de concursos de poesia e cursos de teatro. Entretanto, seu pai queria que ele fosse engenheiro e sua mãe o desestimulava de seguir a carreira de escritor. As brigas com os pais eram constantes e Paulo teve muitas crises de depressão e raiva na adolescência, tendo sido internado três vezes em uma clínica de repouso, onde recebeu tratamento psicológico.
Raul e Paulo Coelho se conheceram em meados de 1972, durante uma visita que Raul fez ao jornal hippie 2001, cujo editor era Paulo. A química entre os dois malucos foi imediata. Bastou um baseado e alguns papos sobre viagens intergalácticas para consolidar essa parceria filosofal, destinada a revolucionar o rock brasileiro.
Entre 1973 e 1976, Raul e Paulo gravaram seis LPs, entre eles “Krig-ha, Bandolo!” (1973) e “Gita” (1974), que figuram entre os melhores discos já produzidos no Brasil. Algumas canções da dupla, tais como “Al Capone”, “Medo da Chuva”, “Como Vovó Já Dizia”, “Tente Outra Vez”, “Tu És o MDC da Minha Vida”, “As Minas do Rei Salomão” e “Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás” tornaram-se tão amadas que passaram a fazer parte do patrimônio inconsciente da nação. Havia, sem dúvida, um perfume de magia no ar.
Mas, a magia acabou quando o mago passou um tempo dedicado a estudos ocultistas, introduzindo Raul e diversos amigos no credo do bruxo inglês Aleister Crowley.
Com a cuca não menos cheia de substâncias exóticas, Paulo Coelho e Raul Seixas decidiram criar um misto de movimento hippie e anarquista: a comunidade da Sociedade Alternativa, que colocaria em prática a utopia ocultista de Crowley. Lançaram-na em grande estilo, com uma irresistível canção que logo se tornou um hino.
Durante os shows de Raul, Paulo distribuía o gibi-manifesto, “A Fundação de Krig-há”, no qual a dupla discursava em defesa da imaginação. Quando subiam ao palco, incendiavam o público com suas verdades contestáveis… Era a apoteose do delírio. Enquanto as massas cantavam numa só voz o refrão hipnótico, Raul pregava a todos o novo credo libertário.
O público, na sua maioria formado por hippies tupiniquins, adorava aquela vibração musical, gritavam, aplaudiam, puxavam uma erva… Mas, acabando o show, voltavam para suas vidas comuns e ninguém cogitava a hipótese de levar aquilo a sério, salvo o pessoal do Dops e da repressão militar que, paranoicos, acabaram confundindo o projeto-pirado de Raul com um núcleo subversivo de guerrilheiros. O pior aconteceu em maio de 74: agentes do Doi-Codi prenderam diversos membros da Sociedade Alternativa e saíram baixando o sarrafo. Dom Paulete, mentor intelectual daquela bagunça toda, esteve a ponto de virar mais um desaparecido.
O susto fez a dupla decidir se exilar por alguns meses nos EUA, até os ânimos se acalmarem. E voltaram para o Brasil alguns meses depois, quando Gita dominou as paradas de sucesso.
Mas essa era uma parceria de coeficiente explosivo grande, tal qual uma supernova, cujo destino era brilhar forte e depois desaparecer. Egos tão gigantescos inevitavelmente terminariam por colidir.
Paulo Coelho por diversas vezes rejeitou a sua fase com Raul. Nas “Palavras Finais” do livro “Veronika Decide Morrer” (1998), Paulo simplesmente ignorou essa etapa. Já no autobiográfico “O Zahir” (2005), o mago refere-se ao período ao lado de Raul com certo descaso, como se tudo aquilo não tivesse passado de uma grande perda de tempo. Ciúmes, ressentimento, amnésia? Talvez sim, talvez não.
Uma possível pista nos é dada no livro “As Valkírias” (1992), onde Paulo revela que, no dia 25 de maio de 1974, em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, diversos integrantes da Sociedade Alternativa foram surpreendidos por fenômenos macabros, tendo alguns deles estado a ponto de serem tragados por vórtices satânicos de pura maldade. O mago jura ter visto o demo “num redemunho”. em plena sala de jantar.
A narrativa de eventos assustadores e sobrenaturais acaba por esclarecer algumas coisas sobre a separação da dupla. Os portais do inferno haviam sido abertos e o próprio Paulo Coelho afirma que:
Sociedade Alternativa não era uma música, era um mantra de ritual mágico, com as palavras da Besta do Apocalipse sendo lidas atrás, em tom baixo. Quem cantasse aquela música estaria invocando as forças das Trevas. E todos cantavam.
Paulo também descreve, o pesadelo que vivenciou, em plena luz do dia, ao lado da namorada, no apartamento em que os dois moravam: tudo tremia, tudo girava e objetos ganhavam vida. Segundo os relatos de Paulo Coelho, o mal estava ali.
Dizem que a viagem sombria de Dom Paulete terminou debaixo de um chuveiro frio, onde ele e a namorada se refugiaram, munidos da palavra de Deus.
Se houve mesmo algum dia esse encontro sobrenatural que Paulo cita em seus livros, ela deve ter ocorrido já no começo de 1976, quando ruiu a parceria dos dois malucos-beleza.
Eles seguiram seus caminhos separados, Paulo Coelho tentou trocar os R – Deixou Raul e colou em Rita Lee, com quem escreveu Fruto Proibido, um dos melhores discos da fase Tutti Futi e mais tarde escreveu a ácida “Arrombou a Festa”, que Rita lançou em carreira solo.
Depois de um período decadente, Paulo Coelho realizou uma viagem à Europa, e se encontrou como escritor. Dessa experiência, lançou “O Diário De Um Mago” de 87 e, no ano seguinte, o fenômeno de vendas “O Alquimista”, segundo o Guinness Book, Paulo Coelho é o autor vivo mais traduzido da história.
Pois é, caro leitor, Paulo Coelho é uma grande aspas na biografia do Raul. Eu entendo que muitos fãs de Raul desprezam Paulo. Sei que muitos o amaldiçoam por assimilar os vícios de Raul com a sua influência. Mas Paulo Coelho e Raul Seixas viveram uma fase ocultista traumática que acabou com a maior parceria do Rock Nacional. E pelo jeito, a ressaca ocultista, atingiu muito mais Paulo, que era o guru das bagunças tudo
Raul Seixas por sua vez era um exímio produtor musical. Ele criava melodias com extrema facilidade, mas sentiu muito a falta do amigo. Ele não estava feliz na Philips Records, e considerava a parceria com o produtor Marco Mazzola essencial para sua obra. Mazzola trabalhou nos principais discos de Raul, mas havia rompido com a Philips para se tornar produtor exclusivo da Warner.
Sabendo que Raul sairia da Philips de qualquer forma, o dono da gravadora, Roberto Menescal, resolve fazer um último álbum com Raul, produzido por Jay Vaquer, um guitarrista norte americano que esteve ao lado de Raul desde o começo de sua carreira solo.
Esse disco de versões se chama “Raul Rock Seixas” e foi lançado em 1977 a duras penas. Jay Vaquer realizou todo o trabalho de produção e gravação do disco, mas incidentes em uma pequena turnê na Bahia fizeram com que Jay não voltasse ao Rio a tempo de mixar o disco. O álbum acabou, assim, sendo mixado enquanto Raul estava viajando e sem que ele pudesse participar da finalização. O grande sucesso foi a mistura de “Blue Moon” com “Asa Branca”
Raul Seixas ficou profundamente marcado por sua parceria com Paulo Coelho. A aura messiânica e filosófica de seus sucessos do passado ainda era pungente ao ponto de a gravadora não querer que o estilo mudasse. Raul conseguiu ir para a Warner e a gravadora queria Paulo Coelho de volta. Como, se eles haviam rompido? O jeito foi Raul procurar outro parceiro e, assim, surge na nossa história Claudio Roberto, o verdadeiro Maluco Beleza.
É… Pois é… o verdadeiro Maluco Beleza não é o Raul Seixas. Muito menos Paulo Coelho. O responsável por essa música é Claudio Roberto, um hippie quase ermitão, que vendia sandálias nas feiras de artesanato no interior fluminense.
Cláudio Roberto é figura importantíssima nessa história porque convenceu e foi convencido. Raul, era um astro, mas não conseguia levar a vida como tal. Ele se entorpecia para fugir da realidade, e a presença de Cláudio conectava Raul ao já quase extinto movimento hippie. Apesar de ser professor de educação física, era bicho grilo autêntico: morava numa cabana e sobrevivia de seu artesanato, sem falar que era pouquíssimo reconhecido por seu talento musical.
Vale lembrar também, que Raul já havia gravado uma música em parceria com Cláudio Roberto em 1975, que é nada mais nada menos que “Novo Aeon”.
Em entrevistas, Cláudio lembra que foi convidado para ir ao apartamento de Raul e começaram a mostrar suas composições um para o outro. Então, Raul tocou a base de “Novo Aeon”. Cláudio conta que foi ao banheiro e, quando voltou, a letra inteira estava em sua mente e precisou apenas de um papel para registrá-la.
Para entender o que fez Raulzito dirigir seu Dodge Dart pelo interior fluminense em busca de Cláudio, precisamos entender o momento.
Era 1977 e Raul Seixas travava uma briga ideológica com a sua gravadora, a Philips: dinheiro, amigos… Como sempre digo, não basta talento, nem estar no lugar certo na hora certa. Precisa ter sorte e, depois, precisa dar lucro para os investidores. Raul deu muito lucro nos discos “Krig-Ha Bandolo!” e “Gita”. Depois disso, suas vendas caíram consideravelmente. Na minha opinião, Raul foi bem-sucedido e, após o estouro, se consolidou em seu nicho. Rock, amigos, no Brasil dos anos 70 era nicho. O estilo só foi ser grande depois do surgimento do rock Brasília, e do Rock In Rio… Concorda? Antes disso, era nicho. E, por causa da inconsistência nas vendas de seus discos, a gravadora não via Raul como um artista do primeiro time. Isso limitava a sua liberdade artística.
O estopim aconteceu durante a gravação de “Há 10 Mil Anos Atrás”. Raul, que tinha plena consciência da importância histórica da sua obra, anunciou a troca da Philips para a recém-inaugurada Warner Music Brasil, onde estava o produtor parceiro Marco Mazzola.
Ao mesmo tempo em que lutava por reconhecimento, Raul enfrentava três crises pessoais. Nesse período ele foi diagnosticado e sentia os primeiros sintomas de pancreatite aguda, doença que no futuro o levaria a se submeter a uma cirurgia para retirar parte do órgão e, dali a alguns anos, essa mesma pancreatite o levaria também à morte.
A saúde frágil era fruto dos abusos de drogas e, principalmente, bebidas alcoólicas. Foi nesse período também que sua esposa – Glória Vaquer – irmã do guitarrista Jay Vaquer, precisou voltar para os Estados Unidos, para acompanhar o tratamento da filha do casal – Scarlet Seixas – que tinha um caso grave de escoliose e precisou colocar uma haste de metal na coluna. Hoje em dia, nas redes sociais, Scarlet é bem ativa, assumiu o sobrenome do pai e está sempre exaltando sua obra.
Por último e mais importante para a nossa história, foi nessa época também que Raul rompeu com Paulo Coelho encerrando uma parceria muito bem-sucedida. A gravadora tentou reaproximar a dupla, mas sem sucesso. Então, além dos problemas pessoais, Raul precisava naquele momento provar seu talento, provar que ele poderia fazer música sem Paulo Coelho e, na boa… ele conseguiu, porque o que veio na sequência foi simplesmente “O Dia Em Que A Terra Parou”
Cláudio Roberto foi tão importante que Raul dividiu todas as músicas com ele. Se você me disser que “Maluco Beleza” é a música mais importante do disco, dependendo da posição dos astros, eu posso até concordar contigo, mas é preciso também fazer justiça ao verdadeiro maluco beleza.
Essa balada brizada surgiu de uma música que Cláudio já havia tocado para Raul em diversas oportunidades. Na preparação final do material do disco, Raul, fluente na língua inglesa, casado com uma americana, resolveu escrever a letra em inglês. Ok, mas como Raul envolveu Cláudio Roberto até nos processos de gravação, momentos antes, já no estúdio, enquanto Raul se preparava para gravá-la, os dois, muito doidos, resolveram escrever uma letra em português. Em suas entrevistas, por vezes Cláudio disse que eles não tinham a menor ideia da importância daquela música que escreveram assim, de bate pronto.
Mazzola cuidou para que a produção fosse impecável: conseguiu os melhores músicos de estúdio e arranjos do maestro Miguel Cidras. Mas quem não ajudava muito era Raul, que bebia demais e não estava conseguindo gravar suas partes. Certo dia ele resolveu levar para o estúdio um pai de santo, Seu Guimarães.
Mazzola também conta que foi ele que convidou Raul para ir pra Warner, e seus colegas de trabalho o alertaram que Raul “já era”, que o cara não conseguiria gravar e que ele iria se arrepender. O que de fato não aconteceu e a faixa que Raul gravou com auxílio dos orixás foi justamente “Maluco beleza”, que viria a estourar nas rádios e é a sua música mais tocada até hoje.
Obviamente, “Maluco Beleza” ganhou um vídeo no programa “Fantástico”, em que o cantor surpreendeu seus fãs ao aparecer sem barba, de cabelos curtos, metido num terno. Raul era demais e, como dá pra imaginar, as gravações desse disco foram bem turbulentas devido aos problemas de Raul com álcool e drogas. Apesar disso, o produtor Marco Mazzola havia reunido os melhores músicos de estúdio do país e, para abrilhantar a nossa playlist, vamos dar uma corrida pelas faixas:
“O Dia Em Que A Terra Parou” abre com “Tapa Na Cara”, um funk swingado cujo instrumental é executado pela Banda Black Rio, que estreava na gravadora naquele mesmo ano. Como Raul e Cláudio não haviam conseguido fazer uma letra, decidiram que essa faixa seria instrumental. Mas Mazzola não se conformou com isso e um dia antes de viajar para mixar o disco nos Estados Unidos, ele chamou Raul e Cláudio no estúdio, lhes deu uma garrafa de uísque Johnnie Walker junto com o desafio de escreverem uma letra para essa música.
Segundo Cláudio, tudo aquilo surgiu em meia hora… que mágica tinha naquele Johnnie Walker?
“No Fundo Do Quintal Da Escola” é mais uma música emblemática da dupla, que não tem o menor interesse em explicar sobre o quê ela fala, e deixa a eterna dúvida que é debatida e defendida pelos raulseixistas: afinal, ele estava fumando maconha com Zezinho no fundo do quintal da escola, ou fazendo sexo com ele?
“Eu Quero Mesmo” é outra canção emblemática desse disco e, apesar de existirem controvérsias, na minha opinião, Raul está, sim, falando de Paulo Coelho, confessando que juntos eles escreviam difícil só pra complicar. Esse disco marca o desejo de Raul em modificar sua abordagem artística e superar a persona do místico profeta impressa em seus primeiros sucessos.
O lado B abre com “Sapato 36” que, cara, quem conhece um pouco da minha história sabe dos meus conflitos com o meu pai. Já contei um pouco aqui no Clube. Longe de ser uma exclusividade minha, mas essa canção simboliza um desejo de liberdade pessoal e artística que confunde com provocações metafóricas de épocas da ditadura.
Em seguida, o bolero “Você”. Eu tenho um amigo que não vejo há muito tempo. A gente brincava, mas de forma séria, ao recomendar que essa música precisava ser ouvida com moderação, porque continha uma grande dose de verdades indigestas…
Em “Sim”, obviamente Raul fala sobre as consequências do sim que sela o matrimonio. Mas, se você quiser aprofundar e procurar outros significados, pode até encontrar nessa letra referências das tais forças malignas citadas por Paulo Coelho em seus livros e que, supostamente, foram o motivo de o mago negar a sua história com Raul.
Baiano e orgulhoso como deve ser, Raul não poderia deixar de fora um baião. “Que Luz É Essa?” conta com a participação de Gilberto Gil tocando violão e fazendo “backing vocals”. Sabia dessa? Na contagem no início da canção, a voz que ouvimos é do Gil.
E o álbum termina com a segunda incursão da funk music em “De Cabeça-pra-Baixo”, onde Raul novamente é acompanhado pela Banda Black Rio.
Na capa e na contracapa do disco está um desenho do artista plástico Roberto Magalhães. Claudio Roberto se diverte ao lembrar que foi visitar o artista da capa ao lado de Raul para tentar fazer a sua cabeça, passando as informações necessárias para terem uma capa que representasse o conteúdo.
O que Roberto Magalhães concebeu foi a imagem de Raul parcialmente enterrado em um deserto, trajando paletó, óculos e gravata. O desenho reflete o esforço de Raul em enterrar sua antiga persona de místico dos primeiros discos. Por outro lado, mostra também como Raul se sentia soterrado pela gravadora em busca de sua emancipação artística. Um clássico do rock brasileiro, sem dúvida, que merece todo o nosso reconhecimento. No Spotify, Deezer e Youtube você pode conferir a playlist com todas as músicas citadas nesse episódio.
Mas, agora… pare tudo, porque vamos fritar nas ideias sobre esse dia: o dia em que a terra parou.
Escrita em parceria com o compositor Cláudio Roberto, “O Dia Em Que A Terra Parou” tem como inspiração o filme de ficção científica que leva o mesmo nome e foi lançado em 1951.
Dirigido por Robert Wise, o longa “O Dia Em Que A Terra Parou” conta a história de um alienígena que vem ao planeta trazer uma mensagem de paz.
Para demonstrar seu poder, o alien faz com que todos os aparelhos elétricos da Terra parem de funcionar, com exceção daqueles essenciais à vida, como os de hospitais e de aviões em voo.
Lançado no início da Guerra Fria, o filme tinha a intenção de fazer um apelo de paz entre os povos da Terra. Já a letra de Raul e de Cláudio Roberto tem um propósito parecido, mas vai por outro caminho:
Raul quase nunca se preocupou em explicar suas músicas. Pelo contrário, muitas vezes ele até as tornava mais confusas ao explicá-las. Mas “O Dia em Que a Terra Parou” é uma exceção. O autor começa explicando que aquilo é um sonho que ele teve. Não um sonho qualquer: um sonho de sonhador. O Maluco que tenta controlar a sua maluquês, essa é a loucura Controlada foi difundida por Carlos Castaneda. O sonho de quem gosta de sonhar acordado. Assim, já começa a nos instigar a sonhar com ele. Como seria o mundo se um dia as pessoas combinassem que ninguém ia sair de casa? Ninguém!
A minha história com essa música é curiosa. Não é de hoje que Raul Seixas me intriga. Primeiro ele me fisgou em “Carpinteiro do Universo” (qualquer dia eu conto essa história), mas Raulzito me fisgou também em “O Dia Em Que A Terra Parou” e essa eu vou contar agora.
Com 15 anos eu já havia passado por vários empregos, geralmente como aprendiz ou ajudante, e um desses foi em uma loja varejista de móveis. Era uma filial que tinha apenas uma vendedora. Sem qualquer experiência em vendas, eu fui contratado apenas para recepcionar os clientes e fazer um pré-atendimento. Caso não tivesse cliente para eu atender, minha função era ficar ali parado sem fazer nada, jamais sentado, sempre de pé. Era muito chato, confesso. Passavam horas sem um cliente sequer entrar na loja. Então, para me distrair, eu ficava parado perto do aparelho de som ouvindo uma música ambiente. Um belo dia, cheguei de manhã e ouvi uma música diferente. Eu já conhecia: era Raul Seixas. Provavelmente uma daquelas coletâneas “Grandes nomes da Música Brasileira”, com canções familiares. Eis que toca uma que eu nunca tinha ouvido até então: “O Dia Em Que A Terra Parou”. Não lembro direito da sensação, mas sei que fiquei hipnotizado pela história, imaginando o tal dia e fiquei imerso nesse pensamento. Como eu pensava em um dia aprender a tocar bateria, as viradas também me chamaram a atenção, pois é o que não faltava nessa música. Até hoje eu não sei quem gravou essa bateria. Os créditos estão divididos entre 4 músicos: Pedrinho Batera, Paulinho Braga, Mamão e Luiz Carlos Batera.
Retomando: eu lá, parado, ouvindo “O Dia Em Que A Terra Parou” na maior imersão filosófica e sinto um empurrão e uma bronca. Acontece que enquanto eu ouvia a música, entrou um cliente, perguntou algo pra mim, e eu não o respondi. Obviamente o cliente saiu da loja e foi embora.
Eu não o vi, mas a minha chefe viu e, muito brava, me chamou a atenção. Afinal, era tão difícil entrar um cliente e, quando entra, eu deixo que ele vá embora!?
Resumindo a história, no dia seguinte eu fui demitido e na semana seguinte a loja fechou.
A única boa lembrança que tenho desse emprego é o dia em que eu conheci “O Dia Em Que A Terra Parou”.
O empregado não saiu pro seu trabalho
Dona de casa não saiu pra comprar pão
O guarda não saiu para prender
E o ladrão não saiu para roubar
Se você gosta de analisar com simplicidade, vai se confortar ao saber que não foi o planeta Terra que parou literalmente, deixando de girar. Foram as pessoas ao redor do mundo que decidiram ficar em suas casas, deixando de produzir, de consumir e de fazer quaisquer outras atividades. No dia seguinte elas retomaram a rotina e os dias voltaram a ser iguais.
Mas, para algumas pessoas, os compositores estão tratando do conceito de divisão social do trabalho a partir da influência do filosofo Karl Marx, um revolucionário socialista alemão que morreu em 1883, mas suas ideias continuam vivas até hoje. Aliás, no site Letras.com, onde os usuários analisam as letras das musicas, a teoria mais aceita é que Raul Flertou com Karl Marx em O Dia que a terra parou.
Marx dizia que o trabalho gera uma hierarquia social entre a classe dominante, dona do capital, e a classe trabalhadora detentora da mão de obra. Daí podemos encaixar a frase mais famosa atribuída a ele:
Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence
Mas, não levem isso tão a sério, porque a frase mais famosa atribuída a Marx não é dele de fato e, sim, do não menos importante teórico socialista Ferdinand Lassalle. O que Marx realmente disse e podemos encaixar na nossa análise é:
Os trabalhadores não têm nada a perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes.
Informando que os trabalhadores tinham o poder de parar as industrias. Será que “O Dia Em Que A Terra Parou” seria uma convocação para que as classes que produzem a partir da matéria-prima se unissem com aqueles que organizam a sociedade e parassem tudo o que estivessem fazendo, como uma convocação de greve geral? Muitos fãs de Raul acreditam que sim.
E daí podemos imaginar: Caso toda a população mundial aderisse, esse seria o maior motim da história, claro que isso não vai acontecer. Então é utópico e Raul sabia disso, por isso, retrata como apenas um sonho, o sonho de que um dia todos os humanos tivessem consciência de classe e, diferente de reconhecer a importância individual, dariam valor aos grupos e coletivos organizados, que é quem de fato detêm o poder das massas. Um sonho revolucionário, que também pode ser um sonho perigoso para a classe dominante.
Essa música se tornou ainda mais incrível, porque renasceu em seu propósito recentemente… O sonho de Raul virou realidade em 2020 quando realmente a terra parou por causa da pandemia!
Nas Igrejas nem um sino a badalar
e os fiéis não saíram pra rezar
o aluno não saiu para estudar
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
No dia em que a Terra parou, todo mundo entendeu o sonho de Raul Seixas, porque deixou de ser um sonho. A pandemia nos tirou das ruas. Ficamos confinados dentro de nossas casas. Muitos pararam tudo e tiveram um princípio de entendimento das questões existenciais em que essa música nos instiga a pensar.
O momento em que o mundo lutava para conter o avanço da pandemia obrigou as autoridades a recomendar que diversos estabelecimentos fechassem as portas, eventos foram cancelados e a busca por mantimentos gerou caos. Como se fosse premeditado, parecia que “O Dia Em Que A Terra Parou” estava realmente acontecendo.
Nas redes sociais, Raul tornou-se o profeta que previu tudo isso, envolto em muitos memes e brincadeiras, claro. Mas, realmente aconteceu e foi o mais perto que chegamos do tal dia sonhado. Porém, há uma interpretação equivocada nessa compreensão. Raul diz:
O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar
No “O dia Em Que A Terra Parou” de Raul não podemos encaixar a doença causada pelo vírus, porque, é claro, não tinha mais doença para curar. Mas, aí é que tá, amigos: será que não entendemos direito e a música na verdade é a profecia sobre o dia em que o mundo acaba? Não teria mais doença para curar, porque todos estaríamos já mortos, vivendo em um outro plano espiritual? Legal, né?
E se analisarmos que a Terra já parou várias vezes devido a desastres naturais, queda de meteoros e dilúvios, podemos facilmente perceber que a vida sempre volta a florescer no planeta azul. Ou seja, a terra nunca para realmente. Se cada um de nós é um universo, o fim do mundo de Raul é a morte, que talvez seja o segredo dessa vida.
A pausa dramática é para que, a partir de agora, você, caro ouvinte do Clube, também desenvolva as suas teorias sobre “O Dia Em Que A Terra Parou”. Podemos interpretar tudo isso como uma crítica ao conformismo, mas Raul nos obriga a pensar que o mundo pode, sim, ser um lugar mais solidário. Só depende da nossa união para que um dia, quem sabe, a paz deixe de ser apenas um sonho.
Também precisamos frisar que “O Dia Em Que A Terra Parou” é uma música de 1977, o décimo terceiro ano de ditadura no Brasil, e a crítica ao conformismo de Raul tem um outro endereço também. Os estudantes decidiram enfrentar a repressão e Raul havia voltado do exílio há pouco tempo. Ou seja, ele tinha consciência de que algo precisava ser feito para parar aquele regime ditatorial. E pode ser interpretada também como uma convocação para que os estudantes se mobilizassem e parassem tudo, para que a democracia fosse reestabelecida.
E, assim, chegamos ao fim de mais um episódio sobre Raulzito. Essa é a sexta temporada do Clube, a Temporada das Continuações. Quem sabe a gente volte um dia para finalizar a saga do pai do Rock Brasileiro… Isso só depende dos ouvintes e sócios desse Clube.
Foi um prazer falar de música com você e até a próxima!
Gilson de Lazari
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Roteiro e locução: Gilson de Lazari
Revisão: Camilla Spinola e Gus Ferroni
Arte da vitrine: Patrick Lima
Edição de áudio: Rogério Silva
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