A partir da escolha dos sócios do Clube, nesse episódio, teremos a oportunidade de analisar a canção: “O Mundo é um Moinho”, um clamor em forma de música e poesia, de um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos… Cartola, “o poeta das rosas”.
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Roteiro e locução: Gilson de Lazari
Revisão: Camilla Spinola e Gus Ferroni
Transcrição: Camilla Spinola
Arte da vitrine: Patrick Lima
Edição de áudio: Rogério Silva
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Confesso que fiquei um pouco surpreso: Cartola, o divino, o poeta das rosas… Foi quase que uma unanimidade entre os associados que votaram na enquete dessa temporada e o escolheram entre opções como Queen, Tom Jobim, Martinho da Villa, Gilberto Gil… Não que ele não mereça um episódio. Pelo contrário, é uma honra contar essa história, mas fiquei surpreso porque Cartola morreu em 1980 e nenhum de seus sambas tem um la la la la ou le le le le. São exclusivamente poesias ritmadas ao som do velho pandeiro e suas letras discorrem sobre temas do ponto de vista do boêmio melancólico… É uma arte de pouco apelo comercial, se analisarmos a evolução do samba.
Cara, que honra participar de um clube tão eclético e meritocrático… Graças a vocês, com respeito e sem ser vago, teremos a oportunidade de fazer justiça ao poeta que só veio ter a tal sorte, que essa tal indústria fonográfica exige, no final da vida…. Mas deu tempo e a música do Cartola que escolhemos para enfatizar nesse episódio é… “O Mundo é um Moinho”.
Que tal você aí, que gosta do Clube e que já reconheceu valor no nosso trabalho, apoiar essa missão? Seria ótimo, pois como eu já disse, os sócios oficiais participam do enredo, recebem episódios exclusivos, são citados nos episódios, ouvem antes… enfim. Acessa lá: clubedamusicaautoral.com.br/assine e conheça as vantagens que você recebe em troca do seu apoio.
No final dessa temporada, teremos um episodio extra, onde Cocão e eu vamos comentar os bastidores e ler as mensagens dos ouvintes. Você pode tanto nos escrever, dando sua opinião, ou mandar um áudio. O Clube está no Facebook, Twitter, Instagram e no Telegram. Procure por Clube da Música Autoral que só de seguir você já começa a fazer parte desse Clube.
Antes de começarmos, aviso que na temporada 4, no episódio 38 falamos sobre a canção “Pelo Telefone”, aquela que, segundo os especialistas, seria o primeiro samba já gravado. É uma boa introdução para esse episódio. Fica a dica, porque, apesar de a historia do Cartola conter curiosidades da primeira metade do século XX, foi só em 1974, aos 65 anos, que ele conseguiu gravar o seu primeiro disco por uma gravadora que também tem uma linda história… E é por aí que quero começar. Roda a vinheta, Cocão.
“São Paulo é o túmulo do Samba”. Essa forte frase foi difundida por muitos saudosos e bairristas admiradores do samba carioca. A rivalidade Rio/São Paulo não é novidade pra ninguém. Mas, até na música? Sim… E digo mais: principalmente na música.
Se no Rio de Janeiro o samba teve como importante matriz o maxixe, em São Paulo o samba rural, ou samba de bumbo, estava diretamente ligado aos batuques negros. Isso se explica pelo fato de a cultura urbana europeia estar mais amplamente difundida na capital fluminense, em comparação com São Paulo, onde a cultura rural se fez presente por mais tempo.
O Samba foi apenas uma das bem sucedidas tentativas de reconstruir a cultura africana após a escravidão. E o Rio de janeiro, indiscutivelmente, foi o berço do samba. Mas, outros importantes pólos também evoluíram essa tradição musical. Adoniran é o maior bamba “pros paulista”…
Mas, Gilsão, o que essa rivalidade tem a ver com Cartola da Mangueira, meu filho?
Calma que eu explico. Os anos 60 são marcados por uma “revolução” provocada pelas batidas do violão de João Gilberto, um dos precursores da bossa nova; um ritmo que transcendeu fronteiras com sucessos mundiais, como “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinicius. Simultaneamente, o samba tradicional, aquele do Cartola, voltou a ganhar força com as gravadoras apostando na retomada do estilo com cantores contemporâneos para sua época, como Nara Leão e Paulinho da Viola.
Porém… Ah, porém não foi no Rio que muitos mitos do samba foram reconhecidos e, sim, em São Paulo. Um dos grandes revolucionários, não só do samba, mas da música brasileira em geral e também um tanto quanto anônimo, foi o empresário Marcus Pereira que, ao lado do seu parceiro, o músico Luís Carlos Paraná fundaram “O Jogral”, um point da boemia paulistana, referido por muitos como o “mini templo da cultura brasileira”.
Sabe no filme “Meia noite em Paris”, de Wood Allen, quando o personagem interpretado por Owen Wilson volta no tempo e conhece o bar Le Polidor, um local que fez casa para alguns dos maiores escritores da década de 1920? Pois é. O Jogral seria uma espécie de Le Polidor da Paulicéia: reduto de jornalistas, intelectuais e artistas que se encontravam para ouvir as músicas que eles consideravam a verdadeira cultura popular brasileira, tudo isso em oposição ao iê-iê-iê da Jovem Guarda, que seria um estilo copiado dos gringos e de menor valor.
Aqueles longos debates regados a música, poemas e muito álcool fizeram com que, em 1967, o publicitário Marcus Pereira resolvesse gravar um disco como presente de final de ano para os seus clientes. Esse é o primeiro disco de Marcus Pereira, que continha composições de Chico Buarque, Adauto Santos e Mauricy Moura, interpretados por Paulo Vanzolini e com produção do então desconhecido Toquinho. O disco se chamou “Onze sambas e uma capoeira”.
E não foi só entre os boêmios do Jogral que esse disco fez sucesso. Ele foi objeto também de críticas positivas, apesar da circulação e tiragem limitadas. Pois bem, deu certo. “Então, por que não gravar mais discos?”, pensou Marcus Pereira. E, em parceria com Paraná, nasceu o embrião da famigerada gravadora independente do Jogral. Logo, Marcus Pereira resolveu deixar sua bem sucedida agência de publicidade e passou a dedicar-se totalmente à música. Em 1973, seu sócio, Luís Carlos Paraná faleceu, ele assumiu a totalidade do Jogral e fundou a Discos Marcus Pereira, que ao longo dos seus 15 anos de existência lançou 144 álbuns de música brasileira.
Mas, Gilsão, o que isso tem a ver com o Cartola? Em 1974, Cartola já era um senhor que vivia um dia após o outro com pouca expectativa de que sua obra fosse reconhecida em vida. E entre as apostas da Marcus Pereira estava Cartola, que gravou dois discos no selo. O Cartola II, de 1976, veio a se tornar o oitavo disco entre os 100 mais importantes da música brasileira…. Tá pouco pra você?
Então, analise comigo: um dos maiores sambistas cariocas só conseguiu gravar seu primeiro disco após um bando de loucos boêmios paulistas resolver valorizar a cultura brasileira, e transformou um lavador de carros de 65 anos em um dos maiores mitos do samba brasileiro.
Não levem isso como provocação. Não quero acirrar essa rivalidade, mas achei importante evidenciar o legado que a gravadora Discos Marcus Pereira nos deixou. São discos revolucionários para história da música brasileira. Agora, sim, sobre o nosso autor, Cartola, não sei se você se atentou, mas somente aos 65 anos é que ele gravou seu primeiro disco… Dizem que antes disso ele era um lavador de carros… Como assim? Cartola dizia “Minha vida foi como um filme de mocinho, eu só venci no final” Mas, para contar essa história desde o início, precisaremos voltar essa fita.
Nascido em 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, Angenor de Oliveira, o terceiro filho de Sebastião de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira, cresceu ouvindo seu pai tocar cavaquinho e violão.
Tomou gosto pela música e pelo samba ainda moleque, quando aprendeu com o pai a tocar cavaquinho e violão. Dizem que seu Sebastião era um pai rígido e não permitia que os filhos encostassem em seus instrumentos, tratando-os com muito zelo. Mas, o pequeno Angenor era esperto. Ele fixava os olhos nas mãos do pai tentando entender como ele fazia os acordes, esperava sua ausência e então tocava os instrumentos escondidos do pai que, quando notou…. o filho já sabia tocar!
Aos 8 anos, a família foi morar em Laranjeiras, zona sul carioca. Já nessa época, acompanhava o pai nos desfiles do Dia de Reis e ia ao rancho do Arrepiado, um tipo de grupo carnavalesco que antecede o nascimento da escola de samba. Estamos falando de 1920.
Com 11 anos, devido a problemas financeiros, sua família se mudou para o morro da Mangueira —na época uma comunidade com apenas 50 barracos. O jovem Angenor, mesmo com as dificuldades financeiras, estava sempre alinhado e cheiroso. Ele estudou apenas até a terceira série, mas gostava de ler. Cartola tinha tremendo apreço pela obra de Carlos Drummond. Quando ele tinha 15 anos, sua mãe faleceu. Nessa época, Agenor se rebela, abandona os estudos (mas terceira série com 15 anos?) e ao lado do grande amigo e principal parceiro de composições, Carlos Cachaça, passa a beber e frequentar ambientes que seu pai rechaçava.
Logo, numa tentativa de recuperar o garoto, arruma-lhe emprego em uma tipografia, mas não deu certo. O vírus da boemia já havia conquistado o rapaz e, após um briga épica, resolve ir embora da casa do pai, que fala a frase jamais esquecida pelo filho… “Eu vou embora desse morro, mas deixarei um Oliveira para me fazer vergonha”
Cartola morou em vagões de trem, até conseguir um emprego e um barraco. Nessa época ele meio que é adotado por sua vizinha, Deolinda da Conceição. Foi quando ganhou o apelido Cartola. Acontece que, para sobreviver, trabalhava de pedreiro na região central do Rio, onde via as belas damas da high society indo e voltando o dia todo. Como ele sempre foi muito vaidoso, decidiu que não usaria roupas maltrapilhas e adotou um elegante chapéu-coco para trabalhar na obra. E, assim, nasceu o apelido “Cartola”, já que o chapéu-coco era grande para sua pequena cabeça e parecia mais uma cartola.
Deolinda era 7 anos mais velha que Cartola. Estar com mulheres mais velhas sempre foi uma preferência para cartola, que perdeu sua mãe muito cedo e tentava substituir o vazio. Deolinda tinha uma filha e Cartola se ofereceu para adotá-la e, em um certo momento, os dois decidiram morar juntos.
Em 28 de abril de 1928, Cartola, junto a outros amigos, fundam o G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira. O nome surgiu porque a Mangueira era a primeira estação, a partir da Central do Brasil, que tinha samba. E o verde e rosa ele trouxe das cores do rancho que a família frequentava. Cartola era muito diplomático. Só ele conseguia, com seu jeito calmo, organizar a bagunça por trás da criação de uma escola de Samba. Até hoje, sempre que a Mangueira vai entrar na avenida pede licença ao Mestre Cartola para exibir toda a exuberância do verde e rosa que eternizou a escola, pois foi Cartola quem compôs o primeiro samba da Mangueira: “Chega de Demanda”.
Outro fato curioso é que esse samba só foi lançado em 1974, no disco “História das Escolas de Samba: Mangueira”. E quem era a gravadora? Os paulistas da Discos Marcus Pereira que fizeram um resgate histórico desses sambas jamais gravados. Mas, não se perca na nossa história, ainda estamos em 1931 e, através do crescimento dos desfiles de escolas de samba, Cartola se torna um dos compositores mais conhecidos dentro e fora do morro. Isso só foi possível porque o cantor e compositor carioca Mário Reis fez uma visita para conhecer o samba do morro e comprar uma música do Cartola. Uma época onde o comércio de obras musicais era atípico. Mas, Cartola foi genial: topou vender apenas os direitos de execução da música por 300 mil réis, exigindo se manter como um dos compositores. Moral da história: “Que Infeliz Sorte” foi lançada em 1932 por outro cantor, Francisco Alves, que mais tarde se tornaria um dos maiores intérpretes de Cartola.
Nos anos seguintes, cantoras do calibre de Carmem Miranda e Araci de Almeida também gravaram músicas do Cartola. “Não Quero Mais” foi premiado no desfile da Mangueira de 1936 e regravado por Paulinho da Viola, em 1973, com o título de “Não Quero Mais Amar Ninguém”.
A década de 30 poderia até ser considerada a fase áurea do Cartola. Um dos seus maiores sucessos foi o samba “Divina Dama”, gravado por Francisco Alves e que, segundo o próprio Cartola, foi composto numa quarta-feira de cinzas, em homenagem a uma mulher por quem ele tinha se apaixonado.
Cartola era um compositor boêmio e mulherengo que gostava de prostíbulo e, vira e mexe, se metia em confusões. Sempre no perrengue, dificilmente as gravadoras lhe pagavam seus direitos autorais, pois era um ramo um tanto quanto informal na época. Em 1940, ao lado de Paulo da Portela, Cartola participava do programa “A Voz do Morro” na Rádio Cruzeiro do Sul, no qual apresentavam composições ainda sem título para que o público pudesse nomeá-las.
Também com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres formou, em 1941, o Conjunto Carioca que apesar de não ter ido pra frente, se apresentaram em São Paulo, na Rádio Cosmos, levando como carro chefe do repertório o samba “Vale do São Francisco”, composição de Cartola escrita para a Mangueira, e que a sagrou campeã em 1948.
Músicas que falavam de amor sempre foram as preferidas do compositor. Ele dizia “gosto de fazer samba de dor de cotovelo, falando de mulher, de amor, de Deus, porque é isso que acho importante”.
Com essa simplicidade, Cartola agradava não só ao gosto popular como também à elite cultural do Rio de Janeiro. Era admirado por intelectuais como o maestro Villa-Lobos, que foi um dos maiores divulgadores do Cartola e, em 1942, apresentou-o a Leopold Stokowski —famoso maestro inglês [nasceu em Londres], que veio ao Brasil interessado em conhecer a música popular brasileira. Nesse encontro em um navio ancorado no cais do porto foi gravada a música “Quem me vê Sorrindo”, feita em parceria com Carlos Cachaça e apresentada ao maestro por Villa-Lobos. Se ligou na moral do Cartola, né?
Por trás de toda aquela simplicidade da vida no morro, sendo Cartola um músico que praticamente aprendera a tocar de ouvido, sua música jamais era óbvia. Suas letras falavam de amor sem, no entanto, serem vulgares. Talvez o que mais chamava a atenção fossem suas melodias, que fugiam do senso comum da época e rendiam elogios de compositores como Nelson Sargento, que declarou nunca ter se atrevido a sugerir uma parceria com o amigo Cartola, por considerá-lo “um compositor finíssimo”.
Em contrapartida, Cartola teve outros inúmeros parceiros em suas composições, como Silvio Caldas e até Noel Rosa, com quem compôs “Não Faz Amor”.
Não se sabe ao certo o que aconteceu, mas Cartola sumiu de cena. Aliás, era conhecido por seus repentinos sumiços. Mas, dessa vez, Cartola estaria doente de verdade, com meningite. Pés inchados cambaleando num cai ou não cai. Cartola era um gênio até nos momentos de saúde frágil. Foi quando ele compôs “O que é feito de você, ó minha mocidade”.
Graças a sua esposa, Deolinda, Cartola conseguiu se recuperar, mas quando a fase é ruim, amigo… Deolinda, que era quem segurava a onda em casa, adoeceu e faleceu. Cartola entrou em um momento de solidão e fragilidade tão intenso que o fez ficar desaparecido por mais alguns anos. Para Deolinda ele compôs, sim, um pedido de desculpas.
Procurado pela ala fundadora da Mangueira para que regressasse, Cartola acabou se desentendendo com o presidente da época e resolveu se mudar para o morro do Caju. Dentre tantas fases ruins, dizem que essa foi a pior. Foi quando Cartola se tornou alcoólatra. No Caju a criminalidade e o tráfico eram ainda mais pungentes e ele acaba se apaixonado por Donária, uma mulher da comunidade, casada com um influente traficante. Foram tempos de muito sofrimento e, para Donária, Cartola escreveu um de seus mais famosos poemas
“Se eu te encontrar um dia agonizante,
morrendo em desespero, de remorsos,
pelo mal que me fazes a todo instante,
eu rezarei por ti um Pai Nosso.
E se pensares o quanto me ultrajaste e me pedires perdão,
eu dar-te posso. Em louvor a algum bem que me causaste,
eu rezarei por ti Um Pai Nosso.”
Cartola estava péssimo, perdeu os dentes e ficou tão magro que chegava a ser mórbido. Isso sem falar na doença que surgiu em seu nariz chamada rosácea. Parecia o fim para o sambista, mas eis que, como um anjo, uma outra mulher surge na sua vida. Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. Ela passa a cuidar de Cartola e, logo, a aproximação se torna um romance. Zica reconhecia o valor da obra de Cartola e todos os dias lhe incentivava, afirmando que deveriam ir embora do Caju de volta para a Mangueira, que era o lugar do Cartola. Ele topou e compôs para Dona Zica “Tive, sim”
Sabendo do regresso de Cartola à Mangueira, no início dos anos 70, o cartunista Lan foi visitá-lo e, a pedido da Dona Zica, armou um encontro entre Cartola e Ary Barroso. Ao vê-lo, Ary lhe indicou um médico. O estado físico dele ainda era péssimo. Cartola estava trabalhando como lavador de carros e foi quando Sérgio Porto, que escrevia para o Stanislaw Ponte Preta, reconheceu Cartola lavando carros em Ipanema e escreveu um artigo enaltecendo a obra e a desvalorização do compositor carioca.
A matéria repercutiu e alguns amigos conseguiram um emprego para Cartola no Ministério da Indústria e Comércio como contínuo.
As coisas pareciam estar melhorando. Dona Zica, ótima cozinheira, fazia a feijoada na Mangueira que embalava o samba. Era um grande evento visitado por intelectuais e artistas da cidade. Zica, que era visionária, ao lado de Cartola inaugurou o Zicartola, um bar e restaurante que ficava na Rua da Carioca, no centro do Rio e em pouco tempo se tornou uma sensação, pois o local virou ponto de encontro de sambistas tradicionais e músicos da geração bossa nova, como Tom Jobim, Dorival Caymmi, Nara Leão e Paulinho da Viola, que foi apontado pelo próprio Cartola como seu sucessor.
O Zicartola funcionou durante dois anos, com Zica na cozinha e Cartola como anfitrião, organizando o samba, e também cantando. Reza a lenda que em uma dessas noites, estava presente o crítico de cinema Lúcio Rangel e, após ouvir Cartola cantando “Acontece”, ele foi embora aos prantos, emocionado. Cartola poderia ter enriquecido com seu bar, mas dizem que ele era um péssimo administrador e por isso foram despejados. Outros dizem que em 1965 a ditadura militar promoveu esse fechamento.
Com o dinheiro que ganhou no Zicartola, Cartola arrumou os dentes e fez uma cirurgia plástica no nariz. Para disfarçar as cicatrizes, passou a usar óculos escuros e isso virou sua marca registrada. Em 1968, com a ajuda do governo do estado, Cartola e Zica conquistaram a casa própria na Mangueira, mas mesmo nos anos 70, continuavam pobres. Cartola fazia alguns poucos shows e continuava sonhando em gravar o seu primeiro disco. João Carlos Botezelli (Pelão) que era um obstinado produtor musical, indignado com essa injustiça, tentou um contrato para Cartola gravar o tão sonhado disco, mas não teve êxito. Só em 1974, aos 65 anos, é que Cartola finalmente teria essa oportunidade. E, como eu disse, através da iniciativa da Discos Marcus Pereira que fechou a produção com Pelão, com a direção artística de Aluízio Falcão e arranjos de Dino 7 Cordas. O disco contém alguns dos maiores clássicos do samba como “Tive Sim”, “Alvorada” e “O Sol Nascerá”.
É, demorou, mas finalmente o tão esperado disco do Cartola foi lançado. Na época, para pagar as contas, um disco precisava vender 3 mil cópias. Cartola vendeu mais de 15 mil e isso possibilitou que, em 1976, a Marcus Pereira reinvestisse nele. É quando foi lançado o seu segundo disco, também com o título de “Cartola” ou “Cartola II”, que vinha na capa com uma foto icônica dele na janela ao lado da esposa Dona Zica, e com músicas ainda mais sensacionais. Eu me arrisco a dizer que, pela dramaticidade das composições, esse é melhor disco do Cartola; um tesouro para os colecionadores. “As Rosas Não Falam”, seu grande sucesso que o apelidou como “o poeta da rosa”, está nesse disco. Deixa tocar, Cocão.
E é nesse disco de 1976 que também está a canção tema desse episódio. A partir de agora vamos rodar a vinheta para analisar “O Mundo é Um Moinho”
Cartola, como vocês perceberam, teve uma relação complicada com seu pai. Na infância não podia encostar em seus instrumentos musicais e, na adolescência, deixou que o filho fosse embora de casa entregue à própria sorte… Mas, a vida dá voltas, amigos. Após muitas décadas o pai se reaproximou do filho e, num raro vídeo gravado no final da década de 70, quando a genialidade de Cartola já havia sido reconhecida, Cartola, ao lado do pai, pergunta a ele qual música gostaria de ouvir… Repare na resposta:
“Abismo que cavastes com teus pés”… Se essa frase não te deixa pensativo, deveria… Cartola, no auge de sua inspiração, metaforicamente simboliza o buraco no qual muitas vezes nos metemos. Abismo cavado por nossos pés. Ou seja, provocado por nossas próprias decisões. É genial!
Cartola é um dos raros compositores que vivifica a metáfora; ele usa a simplicidade do cotidiano para dar vida à arte, transpondo do sentido próprio para o sentido figurado. É assim que “O Mundo é um Moinho” consegue conversar com praticamente todos nós. Afinal, quem não teve entraves na vida ocasionados por uma decisão errada? Cartola demorou tanto para ter sua arte reconhecida, exatamente por seus inúmeros erros.
Mas, qual decisão errônea influenciou Cartola nessa canção?
“O Mundo é um Moinho” foi gravada pela primeira vez em 1976 no disco Cartola II, mas estima-se que ele a tenha escrito em 1943, período em que Cartola era um vendedor de composições. A música é dedicada a sua filha Creuza, que na época tinha 16 anos e decidiu ir embora de casa. Agora fez sentido, não? Cartola estava com ciúmes, ou preocupado, pois sua filha havia se tornado mulher e, apaixonada, queria ir embora viver uma ilusão… Quem nunca? Mas tem um detalhe muito importante nessa história… Cartola era estéril, ou seja, ele não podia ter filhos… Como assim, sua filha?
Pois é… Estamos falando da época em que Cartola havia se casado com Deolinda, sua primeira esposa. Ela era madrinha de uma menina chamada Creuza Francisca dos Santos, filha de sua comadre Rosa do Espírito Santo. Isso é um compromisso bem sério, pois na falta dos pais, quem assume a responsabilidade são os padrinhos e madrinhas. E Rosa, que levava uma vida difícil no morro, ficou muito doente e logo faleceu. Sem pai, a pequena Creuza ficou sozinha.
Quando Deolinda deu o recado, Cartola de bate pronto disse “Ela vai morar aqui com a gente”. E, não só isso, ele foi até o cartório e a registrou com o sobrenome Oliveira. Cartola era daquele tipo de pai bonachão, que dificilmente levantava a voz. Essa parte “chata” ficava para a Dona Deolinda que, certa vez, chegou para ele e pediu ajuda.
“Angenor, larga esse violão um pouco. Creuza se enroscou com um homem comprometido e ela quer fugir de casa para morar com ele. Angenor, essa menina está iludida, esse homem não vale nada… Você precisa convencer ela a não fazer isso”
Na maior calma do mundo, diferente do desespero de Deolinda, Cartola resolve ter a tal conversa. Aquela tarde foi toda dedicada a pensar nas palavras que ele usaria para convencer Creuza a ficar, mas de nada adiantou. Como prometido, ela foi embora e, desolado, Cartola compôs “O Mundo é Um Moinho”, que nada mais é que um conselho de um pai preocupado.
Supondo que, talvez, Creuza tenha sido ríspida, podemos imaginar que ela tenha afirmado “Você não é meu Pai, não manda em mim”. Isso teria magoado Cartola profundamente, a ponto de ele fazer a pesada ameaça: “Filha, a vida é um moinho, ela tritura sonhos mesquinhos”.
Moinhos antigos eram movidos por vento, pela força dos rios ou por animais e serviam principalmente para triturar grãos que, após peneirados, viravam pó. Os sonhos de Creuza, segundo Cartola eram como grãos prestes a serem processados em um moinho… e reduzidos à pó!
Porém, em nenhum momento Cartola perde a ternura, por exemplo quando diz “Preste atenção, querida. Mal começastes a conhecer a vida.” Pode-se supor que, talvez, o homem por quem Creuza havia se apaixonado tivesse lhe tirado a pureza de menina… Mas, com empatia, Cartola analisa o momento de vulnerabilidade e, em parte concorda:
“Apesar de saber que estás resolvida… Já anuncias a hora da partida… E em pouco tempo não serás mais o que és…”
Também podemos supor que Creuza estivesse grávida. Aliás, existem relatos sobre isso. Porém, em algumas fontes anônimas que analisam essa canção na internet, por diversas vezes encontrei justificativas de que Creuza havia se tornado uma garota de programa e estaria se mudando para um prostíbulo. Nessa versão, Cartola, como boêmio e frequentador de prostíbulo, estaria imaginando que o que fizera com outras filhas, iriam fazer com a sua. Mas, essa versão não é a oficial e, sim, a de que Creuza foi embora da casa dos pais apaixonada por um homem mais velho. Tanto que no futuro, ela se tornou cantora e participou dos discos do pai como backing vocal.
Conclusão – Esta canção provavelmente vai ficar na sua cabeça por alguns dias, mas é uma boa música e traz uma ótima reflexão, tanto para você que está prestes a sair de casa, quanto para pessoas como eu, que tem uma filha adolescente em casa. Eu me vejo num futuro próximo dando esse mesmo conselho para minha filha e já sofro de véspera…
A vida é um moinho e ninguém discorda disso, nem o Pai do Cartola, o Seu Sebastião, que precisou sair do charmoso Catete para encarar uma vida dura na Mangueira. A vida, com certeza, triturou os sonhos dele e, em algum momento, Seu Sebastião ficou duro… Essa foi a forma que encontrou para não ser moído pela vida, mas de tão duro deixou que o filho fosse embora, viver a sua própria sorte… O sofrimento é inerente. Mesmo os grãos mais duros também viram pó…
Cartola, quando esteve na mesma situação que o pai, fez o contrario. Apesar de não ter obtido sucesso, ele fez o certo: tentou proteger a filha e, disso, surgiu uma música que após ser lançada, 30 anos depois, ajudou a eternizar Cartola que, mesmo moído pela vida, ainda teve oportunidade de tocá-la a pedido do pai.
A lição é: se estiver na dúvida entre estar certo ou ser gentil, seja gentil.
Reconhece valor no que fazemos nesse podcast? Então seja um sócio desse Clube, ou melhor, seja um diretor como Matheus Godoy, Henrique Vieira Lima, Caio Camasso, Marcelo Leonardo, Luiz Machado, Camilla Spinola, Antonio Valmir Salgado Junior, Emerson Silva Castro, João Junior Vasconcelos Santos e Diego Vinicius. Mais que sócios… Diretores do Clube da Música Autoral e merecem o nosso reconhecimento.
As músicas que o Cocão usou nesse episódio estarão em playlists que você já pode ouvir no Youtube, Spotify e Deezer.
(Cocão)
“Gilsão, tem um detalhe sobre a influência musical do Cartola que acho que vale a pena lembrar aqui.”
Diga lá, Cocão.
“Cazuza era “fãnzaço” do Cartola e, por acaso, o nome verdadeiro dele era Agenor. Mas, Cazuza detestava esse nome. Até brigava quando alguém o chamava assim. A real é que ele tinha vergonha, achava que era um nome de velho, mas quando descobriu que o Cartola também se chama Agenor, aliás, ANGENOR porque erraram o nome dele na hora do registro, o Cazuza mudou de ideia e passou a gostar de seu nome, tanto que gravou uma versão de “O Mundo é um Moinho”. Que tal terminarmos com essa versão?
Bem lembrado e super concordo, Cocão…
A arte de vitrine desse episódio foi feita pelo Patrick Lima, a revisão do roteiro é da Camilla Spinola e do Gus Ferroni. A edição é dele: Rogério Cocão Silva e a produção é minha, Gilson de Lazari.
Gilsão, você sempre me surpreende contando ótimas histórias. Acho que em muitos casos tira leite até de pedra, tira leite de onde não tem leite, sério mesmo. Sempre observei esse talento inigualável, mas devo admitir, com Cartola e O mundo é um moinho, você atingiu outro patamar. Parabéns.
Ouvi o programa todo de uma vez aguardando duas coisas:
1. Você citar Cazuza, que só aconteceu no último minuto;
2. Ouvir o Rogério Silva, Cocão para os íntimos, fazer sua participação mais que especial.
E que bom que veio o Cocão e o Cazuza ao mesmo tempo. Adoro ouvir Cartola, mas essa interpretação de Cazuza foi que me apresentou ao grande compositor mangueirence.
Que venha outros cartolas no Clube.
Recentemente ouvi um episódio do podcast da Ilustrada, da Folha de São Paulo sobre o Pelão, produtor que citou no programa e ele também merece ter a história contada por você.
Fala, Ernande, tudo certo? Poxa vida, fico muito feliz que esteja gostando das minhas participações. Eu também conheci Cartola através do Cazuza. Esse foi um dos episódios que eu mais gostei. História incrível. Valeu! Um grande abraço!
Sou a Tatiana Oliveira Dias, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10.
Mais uma podcast sensacional, parabéns!!!!!!!! Atento do primeiro ao último minuto. Obrigado e está decidido, ganharam mais um apoiador. Grande abraço
Seja bem vindo Eduardo
Parabéns Gilson por mais essa preciosidade 👏
Quanta sensibilidade ao falar da vida do Cartola, e que delícia relembrar dessas canções que fizeram parte da minha infância e adolescência. Mais uma vez encantada com seu trabalho. Abraços a você e ao Cocão, que aliás, nos presenteou com a música do Cartola na voz do Cazuza ♥️
Oi, Carla! Legal que você gostou!
A história do Cartola é incrível e suas canções são grandes patrimônios culturais do nosso Brasil.
Essa versão do Cazuza é demais, né? Sinceramente, eu sempre gostei mais do Cazuza nesse modo MPB do que no modo Rock and Roll.
Valeu!
Abraços!