Se você tem alguma ligação com a cultura sertaneja, certamente você já ouviu “Chico Mineiro”, a clássica moda de viola de Tonico e Tinoco. Mas você conhece a história desse lendário personagem?
Pegue seu cigarro de palha, aquela cachaça da boa e vem ouvir esse causo com a gente.
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Roteiro e locução: Gilson de Lazari
Revisão: Camilla Spinola e Gus Ferroni
Transcrição: Camilla Spinola
Arte da vitrine: Patrick Lima
Edição de áudio: Rogério Silva
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Alguns desses velhos rádios davam um estouro ao serem ligados. Alguém se lembra disso? Acho que tem dois motivos para isso: um é porque eles eram valvulados, né? O outro motivo era para nos avisar que já estava na hora de ir para escola, ou ir trabalhar, depende da idade. Eu nem sou tão velho assim, mas lembro das modas e do cheiro do café fresco.
Aqui pro interior de São Paulo, onde vivo, na região de São José do Rio Preto, as modas de viola ainda são tocadas nas rádios ao amanhecer do dia. E, nas casas de famílias tradicionais, ainda se encontram objetos antigos como rádios, vitrolas, máquinas de escrever, violas, discos, máquinas de costura… São objetos que mantêm viva a memória dos nossos pais e avós.
A música popular brasileira se divide em “antes do sertanejo” e “depois dele”, pois incontestavelmente é o estilo musical que mais se popularizou no país e, também, o que mais vende até hoje. Digo mais: a indústria fonográfica brasileira, após a invasão digital, só consegue se manter viva por causa das ramificações da música sertaneja. Quem já ouviu o episódio 8 da primeira temporada do Clube, onde eu falo sobre “Evidências”, vai lembrar que eu falei um pouco da origem da música sertaneja, mas aquela é a visão do roqueiro. Hoje, é dia de valorização da música regional. E o ponto de vista é o do caipira, que orgulhosamente assumo ser. Afinal, cresci ouvindo moda de viola e o marco zero do estilo, sem dúvidas, foi quando Tonico e Tinoco compuseram Chico Mineiro.
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Recados dados e, com Cocão aqui ao meu lado enrolando um “paiêro” enquanto ouve o canto dos bem te vis, eu vou molhando as palavras…. (…) e puxando a proza porque, a partir de agora, com respeito e sem ser vago, vamos contar a história das moda de viola…
Sertanejo Raiz, Moda de Viola, Música Caipira… Modão… Cada região tem seu jeitinho carinhoso de se referir às tradições caipiras. O mais adequado talvez seja Sertanejo Raiz, porque se refere à raiz da música brasileira propagada pelos sertanejos, pessoas que viviam longe da costa, em constante busca por dias melhores, em meio às intempéries da natureza e ao abandono dos governantes.
Para entender a evolução da música sertaneja, eu a dividi em cinco fases. A primeira retrata o surgimento das duplas caipiras e da moda de viola, sendo, claro, Tonico e Tinoco seus principais expoentes. A segunda fase é marcada pela transição, quando outros estilos passam a se fundir com a moda de viola. Entre eles, a “polca” e a “guarânia”. José Fortuna foi um dos principais compositores da fase de transição, que também se destaca por apresentar mulheres nos vocais, como “Irmãs Galvão,” “Cascatinha e Inhana” e “Irmãs Castro”
Por volta dos anos 70, surge o sertanejo romântico, protagonizado por “Milionário e José Rico,” que marca a terceira fase da música sertaneja. Em suas produções, pela primeira vez, ouvimos no sertanejo instrumentos sonoros inusitados, como o trompete, violinos e a percussão.
Milionário e José Rico abriram a porteira para a quarta fase, que marca a invasão sertaneja na mídia. Isso acontece quando os amigos Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo e Zezé di Camargo e Luciano, literalmente invadem as FMs de todo Brasil. Consequentemente as TVs também e, junto com eles, trazem a guitarra e as influências da música country americana marcando a época áurea das grandes gravadoras.
E, por fim, temos o Sertanejo Universitário, aquele que dizem que nunca irá se formar. Os universitários do estilo surgiram no Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, com as duplas que passaram a cantar suas canções num compasso mais rápido e com uma maior valorização dos sons acústicos. Gusttavo Lima, Jorge & Mateus, Cristiano Araújo, Luan Santana e Marília Mendonça, são alguns exemplos bem sucedidos do estilo que imediatamente se adaptou ao formato digital, e me arrisco a dizer que são eles que ainda mantêm a indústria fonográfica brasileira viva.
Em todas essas cinco fases, em comum existe a inovação sonora e o conceito artístico… Ah, o conceito é muito importante, pois a música cria uma tendência comportamental. Seja o chapéu de palha [não seria o chapéu de vaqueiro?], a costeleta longa, a calça apertada ou a camisa xadrez, cada fase tem seu conceito muito bem definido.
Por serem estilos altamente comerciais, algumas pessoas consideram um problema o fato de que, sejam exaustivamente copiados. Daí, a gente já sabe, né? Tudo que é muito popular, também é criticado e alguns pegam até ranço pelo estilo, pois todo aquele investimento midiático, começa a se tornar impositivo. Aqui onde eu moro, nas padarias, lojas e supermercados, assim como na maioria das festas, só se ouve o sertanejo da fase universitária… Então, é comum e até aceitável que saudosistas mantenham seus antigos objetos em casa para lembrar e, mesmo sem terem vivido, bradam que o sertanejo bom mesmo era o sertanejo raiz, aquele do tempo dos nossos avós… aquele que tocava na “rádia” em cima da geladeira da mãe… Aquele, que foi popularizado por Tonico e Tinoco. “Deixa eu” dar mais um trago aqui, porque para contar essa história, teremos que voltar essa fita demais da conta.
Esse aí é Cornélio Pires o responsável pela popularização da cultura caipira. Em 1910, Cornélio apresentou no Colégio Mackenzie, hoje Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, um espetáculo que reuniu catireiros, cururueiros e cantadores do interior do Brasil.
Cornélio foi o primeiro a conseguir que a indústria fonográfica brasileira lançasse, em 1928, discos de 78 rotações, contendo referências da cultura caipira. Muitos creditam a ele o título de inventor da música sertaneja, a partir da adaptação da música caipira.
A carreira profissional de Tonico e Tinoco começa dois anos depois, em 1930, época em que a família Perez trabalhava na Fazenda Tavares, em Botucatu, e os dois irmãos ouviram no rádio a série caipira de Cornélio Pires, que os deixou empolgados. Cinco anos depois, juntaram a quantia de 10 mil Réis e compraram uma viola feita a canivete [é isso mesmo?]. Foi quando começaram a animar as festas da colônia. Apesar de ainda serem meninos, já cantavam à capela e a primeira música que aprenderam a cantar em dupla foi “Tristeza do Jeca”.
João Salvador Perez, o Tonico, nasceu em São Manuel, interior de São Paulo, no dia 02 de março de 1917. Já seu irmão, José Salvador Perez, o Tinoco, nasceu em Pratânia, também interior de São Paulo, três anos depois do irmão, no dia 19 de novembro de 1920.
É gostoso ouvir os irmãos contando sobre a infância humilde na roça.
A influência artística veio dos avós maternos, Olegário e Izabel, que alegravam a colônia com suas canções, tocadas numa antiga sanfona. Em 15 de agosto de 1935, já com a viola e o violão em punho, fizeram a primeira apresentação profissional cantando em uma quermesse com o primo Miguel. Foi quando formaram o “Trio da Roça”. Virgílio de Souza, violeiro das redondezas, era a referência musical deles.
O Trio da Roça passou a ser requisitado para serenatas e demais festas nas colônias. Reza a lenda que os irmãos tinham tanta potência na voz que, de acordo com o vento, dava para ouvi-los cantando na colônia ao lado. Isso chamava o público que arreava seus cavalos, subia em suas carroças e partia para os bailes dançantes, onde as bandeirinhas enfeitavam o ambiente e tinha muita comida regional: batata doce, pamonha, milho verde e, claro, muito quentão.
Durante o dia, os rapazes trabalhavam na roça e, nas folgas, treinavam a cantoria para poder fazer bonito nos bailes, junto às caboclinhas”. Tinoco, o mais novo e também o mais “conversadô”, dizia: “Nóis lá, de carça cumprida, camisa xadrez e as botas penduradas nas costas para não estragar o solado. Enquanto as “moça”, com seus vestidos de chita, dançava de pé descalço e com uma flor no cabelo.”
A esperança dos moços, claro, era de que uma das moças quisesse firmar namoro. Foi num desses bailes que Tonico conheceu e se apaixonou por Zula, filha do administrador da fazenda, Antônio Vani que, muito bravo, proibiu o namoro… Magoado, Tonico compôs “Cabocla”.
No Brasil, durante aqueles simpáticos e difíceis anos 30, só existiam 65 emissoras de rádio e 30 mil aparelhos receptores para uma população de 35 milhões de pessoas [encontrei 41 milhões de habitantes, 16 emissoras em 1930 com criação de mais 43 emissoras ao longo da década de 30, mas não sei se vale a pena investigar tão a fundo esse dado, pois os valores ficam próximos. Só alteraria a população para “aproximadamente 40 milhões de habitantes”. Não encontrei dados sobre o número de receptores]. O Trio da Roça seguia tocando as modas de viola de Jorginho do Sertão, um autor imaginário que eles inventaram para assinar suas canções, que falavam da crise no país devido às revoluções de 1930 e 1932.
No fim do ano agrícola de 1937, os Perez decidiram, com outras famílias, tentar a vida na cidade de Sorocaba. Eles eram em três irmãos e três irmãs. Antonia, Rosalina e Aparecida foram trabalhar na fábrica de tecidos Santa Maria. Chiquinho engajou-se na construção da Rodovia Raposo Tavares. Tonico foi ser servente na Pedreira Santa Helena, futura fábrica do cimento Votorantim. E Tinoco virou engraxate na Estação Sorocabana.
Naquela época, a crise econômica do país chega ao auge. Getúlio Vargas implanta a ditadura do Estado Novo. Adolf Hitler invade e ocupa a Tchecoslováquia e, logo depois, a Polônia. Começava a Segunda Guerra Mundial e com ela muita tensão.
A recessão deixa a vida em Sorocaba insuportável. Nada dá certo para os Perez e eles decidem retornar ao campo. Agora, para a fazenda São João Sintra, em São Manoel, no interior de São Paulo. A volta, contudo, possibilitou aos irmãos Perez a primeira chance de cantar numa rádio. Essa aqui eu quero que vocês ouçam deles mesmos:
Em janeiro de 1941 a família se muda novamente, chegando a São Paulo de mala e cuia, carregando quatro sacos com os trens de cozinha e duas trouxas de roupa. Devido à falta de profissão, as meninas foram trabalhar em casa de família. Tinoco, num depósito de ferro-velho e, Tonico, sem outra alternativa, comprou uma enxada e foi ser diarista nas chácaras do bairro de Santo Amaro.
Os tempos duros da cidade grande tinham lá sua compensação. Principalmente aos domingos, quando a família ia ao circo na rua Lins de Vasconcelos, no então pacato bairro do Cambuci. Num desses espetáculos, os irmãos conheceram pessoalmente Raul Torres e Florêncio, a dupla de violeiros mais famosa de São Paulo na época, que depois formou, com o acordeonista José Rielli, o famoso trio “Os Três Batutas do Sertão”, na Rádio Record.
A Rádio Record era do doutor Paulo Machado de Carvalho, aquele que futuramente seria chamado de “Marechal da Vitória”, por ter chefiado as seleções brasileiras de futebol campeãs do mundo em 1958 e 1962.
Por conta da guerra, os rádios haviam se popularizado no Brasil. Existiam 76 emissoras e mais de um milhão e meio de aparelhos receptores. Era ao redor desses aparelhos que o país todo se debruçava para acompanhar as aventuras dos pracinhas em Monte Castelo. Vinte e cinco mil brasileiros foram lutar na guerra e as notícias eram passadas pelo Repórter Esso, anunciado como “testemunha ocular da História”. Aliás, esse foi o primeiro “radiojornal” e era transmitido pelas rádios Nacional e Record.
O capitão Furtado, que estava sem violeiro em seu programa Arraial da Curva Torta, na Rádio Difusora, promoveu então um concurso para preencher a vaga: participaram desse concurso duplas profissionais conhecidas do rádio como Nhô Nardo e Cunha Junior, Serra Morena e Cafezal. E e o desconhecido Trio da Roça também resolveu concorrer, mas se apresentaram como “Os Irmãos Perez”. Na eliminatória cantaram o cateretê “Tudo tem no sertão” e conseguiram se classificar para a final, na qual interpretaram uma música de Raul Torres e Cornélio Pires, chamada “Adeus Campina da Serra”.
Quando terminaram, o auditório aplaudiu de pé, em meio a lágrimas. Todos pediam bis àquela dupla até então desconhecida. Os demais violeiros foram abraçá-los e o cronômetro marcou 190 segundos de aplausos, contra apenas 90 segundos da dupla que estava em segundo lugar.
No dia seguinte, “O Trio da Roça” já estava contratado pela Rádio Difusora, que acabara de ter sido comprada pela Tupi, e fazia parte de uma ambiciosa ofensiva do jornalista Assis Chateaubriand, para formar uma poderosa rede de veículos de comunicação.
O contrato que eles assinaram foi renovado por dois anos e o salário foi acertado já em Cruzeiros, a nova moeda que havia aposentado os Réis. Mil e duzentos Cruzeiros por mês. Uma fortuna comparada ao salário mínimo da época que era de duzentos e oitenta Cruzeiros.
Já sem o primo Miguel, eles seguiram tocando na radio apenas como “Os Irmãos Perez”. Um dia, durante um ensaio do programa Arraial da Curva Torta, o Capitão Furtado – Arioswaldo Pires, por acaso sobrinho de Cornélio Pires e, como o tio, também um lendário divulgador da música sertaneja – decretou que uma dupla tão original, com vozes gêmeas, não poderia ter nome de espanhol. E os batizou, na hora, de Tonico e Tinoco.
A participação nos programas de radio era tão impositiva, que transformava as duplas em sucesso imediato, fazendo surgir dezenas de convites para shows. A primeira apresentação de Tonico e Tinoco após o reconhecimento artístico foi no cine Catumbi, em São Paulo. Depois, rumaram para o interior, em “turnês” que, no dialeto caipira, eram as excursões: longas viagens em estradas rurais terríveis. Essas excursões chegavam durar até um mês.
Apresentavam-se em cinemas, circos, clubes e até em pátios de armazéns. Mas a recompensa era boa, chegando a voltar pra casa com até cinco mil Cruzeiros para cada um.
Só em 1944 a dupla estreou em um disco de acetato, gravado pela Continental: um compacto que vinha com uma música do lado A e… nada do lado B. Isso aconteceu porque, ao começarem a cantar a segunda música que seria gravada, Tonico, dono da voz aguda, emitiu uma nota a pleno pulmões, no velho e bom estilo da roça. A nota soou tão alto que estourou a cápsula do microfone. Como eram caríssimos, a Continental só tinha um microfone no estúdio, e ficaram muito bravos com Tinoco, a ponto de lançarem o disco só com uma música do lado A. Mesmo assim, esse é um marco para a carreira de Tonico e Tinoco, e o cateretê “Em vez de me agradecê” foi lançado em julho de 1945.
Caso você não saiba, cateretê é uma dança folclórica, mais conhecida como catira. [acho bacana explicar, mas talvez mudasse de lugar no roteiro, para dar um encadeamento melhor. Outra opção seria complementar com mais alguma coisa a respeito do estilo musical, entrar com mais uma música exemplo e depois passar ao fato inusitado a seguir]
Um fato inusitado é que Tonico estava ansioso para se ouvir cantando pela primeira vez e reuniu a família. Mas, distraído, acabou se sentando em cima do disco de 78 rotações que era quebradiço…
A Continental colocou a dupla para fazer aulas de canto e os ameaçou de demissão. A ordem era que aprendessem a cantar macio. No disco seguinte saiu o primeiro compacto duplo, lançado em 1945, com a moda-de-viola “Sertão do Laranjinha”, no lado A, e “Percorrendo o meu Brasil”, no lado B, que foi um sucesso imediato.
Tonico e Tinoco eram artistas reconhecidos, mas não era populares. E, por incrível que pareça, as rádios recebiam reclamações de alguns poucos ouvintes que os achavam irritantes. A Continental resolveu gravar o último compacto de Tonico e Tinoco e eles voltariam para a rádio como músicos de apoio. Mas, como sabemos, nessa indústria da música, desde os tempos antigos, não basta ter talento. É preciso ter sorte e estar no lugar certo, na hora certa. Na gravação de 1946 surge o sucesso definitivo que eternizaria Tonico e Tinoco. Estou falando, claro, do tema do episódio 42 do Clube da Música Autoral: “Chico Mineiro”.
Chico Mineiro talvez seja o maior clássico da música caipira e, erroneamente, sua autoria é creditada apenas aos irmãos Tonico e Tinoco. Porém, nos registros da canção aparece um outro nome: Francisco Ribeiro. Por aí a canção já começa a se tornar notável, pois Francisco Ribeiro era o porteiro da Rádio Tupi e, entre prozas apressadas, um dia o porteiro perguntou a Tonico se ele já havia ouvido a história do Chico Mineiro. Aquele simples questionamento teria feito Tonico se lembrar de todas as histórias que ele ouvia de seus pais quando garoto a respeito do tal Chico Mineiro e, só por isso, Francisco Ribeiro foi creditado como um dos autores da canção. Legal, né?
Mas existe uma controvérsia, conforme trecho do livro “Enciclopédia das Músicas Sertanejas”, de autoria de Ayrton Mugnaini Jr. O porteiro, Francisco Ribeiro, teria entregado ao Tonico 25 versos que o fizeram se lembrar das histórias do Chico Mineiro. Uma história com inúmeras versões diferentes. Por exemplo, se era contada em São Paulo, ele se chamava Chico Paulista; em Goiás, era Chico Goiano – mas a estrutura da história em si era sempre a mesma”.
Legal! Mas, o fato é que a participação do porteiro na letra de Chico Mineiro só foi reconhecida após uma decisão judicial na década de 60. O que mostra que Tonico não era tão bonzinho assim como se pensa. Durante anos Francisco lutou na justiça para ser reconhecido como um dos autores de Chico Mineiro, e ele morreu antes de isso acontecer. Mesmo assim, a família do porteiro conseguiu receber parte dos lucros conquistados pela canção.
Após Chico Mineiro, a maioria das canções de Tonico e Tinoco passam a ser escritas por Tonico, em parceria com alguém que lhe trouxesse inspiração. Mas eu quero mesmo é falar sobre a história da música, sobre o mito. Chico Mineiro existiu ou essa era apenas uma história de pescador?
Tonico, como deixa claro na narração que abre a canção com dialetos caipiras, provavelmente influenciado por Cornélio Pires, representa a primeira pessoa, o tropeiro que traz o testemunho de um crime. “Deixa eu” tomar mais um trago aqui.
“Eu e o Chico Mineiro”: esse poderia ser tranquilamente o nome da canção, mas repare na terceira pessoa. Eu, Chico Mineiro e também o capataz. Porém, no decorrer da história, o tal capataz não é mais citado. Seria ele suspeito do crime que iria acontecer, ou apenas uma palavra usada para rimar com Goiás? Não sei, mas o fato é que o Chico Mineiro existiu, sim. Bom, pelo menos é o que dizem. E ele era de Minas Gerais, obviamente, apesar de não sabermos ao certo qual é a sua origem.
Chico Mineiro teria nascido no início da década de 20 na região de Patos de Minas, Alto de Paranaíba. Existem também, relatos de que Chico Mineiro teria nascido em São Gotardo, no Triângulo Mineiro, e era da Família Vieira, tradicional daquela região. Logo, podemos supor que seu nome verdadeiro talvez fosse Francisco Vieira.
Supostamente Chico Mineiro, não era flor que se cheire. Reza a lenda que ele ficou conhecido em Minas como comprador de gado, boiadeiro, bom violeiro e, às vezes, trapaceiro. Em uma dessas trapaças, Chico Mineiro foi ameaçado, se meteu numa briga e acabou matando três pessoas. Dizem também que, na verdade, Chico, um rapaz mulherengo, teria se envolvido com uma mulher comprometida e esse seria o motivo da rusga que virou briga e culminou em morte.
A família enlutada, sedenta por vingança, contratou dois pistoleiros para matar Chico. Ao saber disso, ele junta seus trens às pressas e parte com esposa e filhos para Ouro Fino, em Goiás, onde o apelido Mineiro foi incorporado como referência ao lugar de onde Chico viera.
Mas, Ouro Fino é uma cidade de Minas Gerais. Como assim eles foram para Ouro Fino em Goiás? Pesquisando a respeito, descobri que Ouro Fino em Goiás não existe, mas já existiu, e se trata do antigo Arraial de Ouro Fino, fundado em 1727 por Bartolomeu Bueno da Silva Filho, no período de busca pelo ouro às margens do Rio Uru e do Córrego de Praia. Ouro Fino chegou a virar distrito, mas foi abandonado posteriormente, e hoje é propriedade particular.
Tinoco, como o protagonista da história, narra que teria contratado Chico Mineiro para fazer o trajeto que supostamente seria o mesmo da fuga, o que nos leva a crer que, mesmo jurado de morte, Chico estaria dando mole ao continuar puxando boiada de Minas para Goiás.
Eis o crime em fatos. Acabou-se o Chico Mineiro, narra com pesar o protagonista que o havia contratado para puxar sua boiada, lembrando que a proximidade tinha transformado os dois em companheiros próximos. Quando sugere que estavam de passagem por Ouro Fino, nos leva a crer que esse talvez não seria o destino final da boiada e, sim, o local onde resolvem passar a noite, provavelmente por causa da Festa do Divino.
A Festa do Divino chegou juntamente com a colonização portuguesa, que foi moldada de acordo com a religiosidade do povo. Essa festa era dividida em etapas: Folia do Divino, leilão, encontro das bandeiras e procissão. Dentre elas, a que mais cativava as pessoas da região, era a Folia do Divino.
De acordo com dados não oficiais, o protagonista da canção seria um tal de João Pires, conhecido tropeiro e comerciante de gado que fazia suas viagens entre São Paulo, Minas Gerais e Goiás, tendo trabalhado com vários boiadeiros. Será que um desses ex-boiadeiros teria feito a denúncia de que o procurado Chico Mineiro estava vivendo com sua família em Ouro Fino? Ou, melhor ainda, seria o capataz o responsável por essa denúncia?
Existem referências de que o capataz se chamava José Pires e era primo do tropeiro, o que daria um álibi para o capataz, mas sinceramente eu adoro essa suspeita.
Dizem também que os pistoleiros chegaram a Ouro Fino poucos dias antes e até arrumaram emprego para disfarçar o real motivo da visita ao arraial. Mas, o fato é que havia uma emboscada esperando por ele, então, houve uma denúncia.
Chico Mineiro chegou a Ouro Fino durante a Festa do Divino no dia 26 de maio de 1925 e foi morto no dia seguinte às 10 horas da noite. Isso só é possível confirmar por causa do registro de sua morte.
Após passar algumas horas tocando viola em um prostíbulo chamado Cambaotá [ou Camboatá?], Chico parou para fazer um cigarro de fumo, próximo ao parque de diversões que ficava em frente à Igreja de Nossa Senhora do Pilar. Os pistoleiros estavam de olho e aproveitaram o momento de queima de fogos e foguetes para se aproximar de Chico e fizeram três disparos:
Dois no peito e um terceiro na cabeça, quando ele já estava caído.
Dizem que João Pires ouviu o grito de Chico, chegou logo em seguida, mas o companheiro já estava morto e os assassinos desapareceram na noite.
Eis que temos o triste e trágico motivo dos companheiros boiadeiros serem tão próximos. Eles eram legítimos irmãos. Entenderam por que a história do Chico Mineiro repercutiu e se perpetuou? Quando corretamente contada, ela revela uma surpresa no final que nos intriga. E eu, como bom contador de histórias que sou, adoro isso.
E tenho dito.
A lenda do Chico Mineiro sugere que, ao examinar o corpo no outro dia, João juntou os documentos do falecido e descobriu o batistério. Chico seria filho de um relacionamento extraconjugal, que posteriormente seria confirmado pelo pai.
Chico Mineiro foi sepultado no cemitério ao lado da igreja e sua sepultura fica exatamente no centro do cemitério. O obituário original desapareceu por volta de 1948 e a cruz também foi levada anos depois por um fã da história ou da música. O povoado de Ouro Fino desapareceu e os últimos moradores a saírem de lá foram de uma família que mudou para Goiânia em dezembro de 1969. Hoje, sobraram apenas as ruínas de Ouro Fino.
Que bela história, não?
Essa música marca a fase em que Tonico e Tinoco ganham reconhecimento nacional e se tornam a mais popular dupla do Brasil. Na história do Chico Mineiro podem ser observados vários fatores recorrentes da cultura cabocla, que sugerem uma justiça penal “frouxa”, mas também existem relatos de que Chico Mineiro seria um molestador de mulheres.
Outro fato que fica obscuro na história é onde estaria sua família, que supostamente morava em Ouro Fino. Teria Chico perdido sua família em uma de suas longas viagens?
Alguns anos depois, Tonico voltou a representar o irmão de Chico Mineiro, João Pires, e narra que após descobrir o parentesco, revoltado, resolve vingá-lo. Essa seria a conclusão da história. A música existe e se chama “Vingança do Chico Mineiro”. Mas, ao invés de reproduzi-la aqui, peço licença para declamá-la.
“Na viola eu pegava pra vê se me consolava disso que me aconteceu
A viola só gemia, parece que ela dizia: “Chico Mineiro morreu”
Quando eu via uma boiada levantar poeira na estrada e o grito dos boiadeiros
De tristeza “inté” chorava… Pra mim me representava grito de Chico Mineiro
Acabrunhado eu vivia de noite já nem dormia, sempre triste a soluçar
Da grande dor que eu sentia por dentro me remoía, resolvi de me vingar
Peguei o trinta embalado, na cinta o punhal “fiado” e saí com o destino
De encontrar co’valentão que matou o meu irmão no sertão de Ouro Fino
Topei com esse malvado, um cabra mal encarado. Na hora desafiei
Ele veio pro meu lado eu com o punhal “fiado” em seu peito lhe cravei
Deixei o cara estendido, no derradeiro gemido, pra Deus eu perdi perdão
Que eu “fez” isto por vingança, chorando a triste lembrança da morte do meu irmão.”
Assim chegamos ao fim de mais um episódio do Clube da Música Autoral. Quem conhece um pouco da história do Tonico e Tinoco sabe que Chico Mineiro é só o começo. E quem conhece um pouco do enredo do Clube, sabe que em breve retornaremos para acabar de contar a história dos Irmãos Perez.
Mas, antes de partir, não posso esquecer de mandar aquele abraço de reconhecimento aos diretores do Clube, Matheus Godoy, Henrique Vieira Lima, Caio Camasso, Marcelo Leonardo, Luiz Machado, Camilla Spinola, Antonio Valmir Salgado Junior, Emerson Silva Castro, João Junior Vasconcelos Santos e Diego Vincicius Queirós. Mais que sócios… Diretores do Clube da Música Autoral.
Também não posso esquecer de mandar um abraço pro Seu Luiz Borges. Certa vez ele me disse que, influenciado pelo Clube, ele resolveu contar a história do Chico Mineiro no Cachaça Proza e Viola. Quando eu ouvi, achei tão legal que, influenciado por ele, também resolvi contar a história do Chico Mineiro.
Deixo um abraço também para os meus conterrâneos de Novo Horizonte, ao meu pai em memória e à minha mãe, que ouviu bastante Tonico e Tinoco comigo por esses dias.
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A arte da vitrine foi feita pelo Patrick Lima, a revisão desse roteiro foi feita pela Camilla Spinola e pelo Gus Ferroni, a edição é do Rogério Cocão Silva e a produção é minha, Gilson de Lazari. Foi um prazer falar de música com vocês e até a próxima.
Impossível parar parar de ouvir